sábado, 4 de setembro de 2010

Crônica: O sentido das coisas


de Kelsen Bravos





Não é por fazer nenhum arrazoado linguístico ou semiótico, pois do que sei disso, nem tudo me foi clareza. Mas a crônica de Pablo Uchoa (A palavra mais bela) me fez refletir sobre o que dá sentido às palavras e às coisas que por elas são ditas, a arbitrariedade dos signos. Declinarei de falar da crônica, prefiro recomendá-la (ver link abaixo).


Em vez disso, contarei a história de um querido amigo que encontrou um amor depois de carpir, durante bom tempo, solidão causada por involuntária solteirice. Seu exemplo mostra que o sentido das coisas está em quem as diz e em quem as ouve. E, se repararmos bem, veremos que o sentido está mesmo é no estado de espírito das pessoas. Pois a nova namorada de meu amigo havia arejado seu mundo. Fê-lo respirar mais profundo. Inflamou seu intimorato peito. Sua emoção tornava tudo possível, vencia distâncias por seu amor. Sim, distâncias, pois entre o casal havia 688 km de estrada noturna entre Fortaleza e João Pessoa.


Meu amigo é poeta, não porque escreva – aliás, para ser vate escrever não é o principal requisito – mas porque vive a poesia, celebra a vida com intensidade (e por isso escreve). Sabe mais do que ninguém que a solidão é o contraponto do conviver, segundo os versos-mantra de Vinícius: “viver é a arte do encontro, embora haja muito desencontro pela vida”. Meu amigo lamenta os desencontros; mas festeja os afetuosos enlaces, os fraternos e os carnais.


Toda segunda-feira, ele e os amigos celebrávamos uma sagrada libação. E quando sua falta começou a se fazer presente, ficamos os três restantes a presumir o que ocorrera ao Poetinha. Três semanas depois, confirmamos nossa pressuposição. À mesa, vimos vindo pela calçada, zoadento, braços abertos, sorriso largo, o Poetinha. Vinha que era uma maria-fumaça, tamanha a avidez com que tragava e bafejava o cigarro. Chegou cantando, e fizemos coro:


“(...) Sabe você o que é o amor? Não sabe, eu sei/ Sabe o que é um trovador? Não sabe, eu sei./ Sabe andar de madrugada tendo a amada pela mão/ Sabe gostar, qual sabe nada, sabe, não/ Você sabe o que é uma flor? Não sabe, eu sei. Você já chorou de dor? Pois eu chorei. (...)". E emendou: “Meu poeta, eu hoje estou contente, todo mundo de repente/ ficou lindo, ficou lindo de morrer/ Eu hoje estou me rindo...”.


Ao findar a canção, falou, com os olhos em flash, da namorada. Era linda! O nosso Poetinha, que nessa época trabalhava no Mercado São Sebastião, estava apaixonado. Era um promissor comerciante, hoje não é mais (mas isso é outra história que qualquer dia eu conto). E ele, que já não gostava tanto de literalmente madrugar no trabalho, depois dessa paixão que o impulsionava a trilhar estradas quase todo dia, passou a ojerizar o lugar. O Mercado significava frustração, impossibilidade, entre outros quetais negativos.


Toda vez que o Poetinha vinha para a sagrada libação, findávamos por deixá-lo na rodoviária. Fazer o quê? Amigo é pra essas coisas! Vai poeta, vai ser feliz! Ele ia e ficávamos, preparando o dia em que ele precisaria de uma lâmpada acesa e uma bebida por perto! Não tardou muito esse dia.


Mas para surpresa de todos, o Poetinha suspirava aliviado. Quando foi ao Mercado, descobriu nele outro significado. Diz que viu um festival de cores, cheiros e sabores: o vermelho das acerolas, o amarelo das seriguelas, o verde das graviolas; os melões, abacaxis, mangabas, cajás, cajus, cajaranas, mangas-rosa, sapoti, muricis. Viu as pessoas e aquela faina toda e subiu cantando as escadarias, contagiando a todos com sua alegria. Estava livre de um falso amor. E o Mercado, outrora prisão, representava com aquela explosão de vida natural ao mesmo tempo a renovação e o reencontro do Poetinha consigo mesmo.


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Leia a crônica de Pablo Uchoa A palavra mais bela

6 comentários:

  1. Passei a tarde lendo e relendo esta crônica! Linda e cruel. Tem mania de postar escritos dos outros...mas é raro um texto seu. Faça a gentileza de escrever mais crônicas e deixar neste espaço, ok? Os nossos agradecimentos! Abraços, Solidade.

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  2. Caríssima Solidade,

    Todo texto não assinado aqui neste blog é meu.

    Feira dos pássaros, por exemplo.

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  3. Kelsen Bravos,

    Estava saudosa de ler você assim conversando com a gente.

    Quero a crônica de sábado e de todos os dias. É um jeito de ter o seu mundo mais perto.

    Uma fã.

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  4. Grande Kelsen,

    Texto bom, ligeiro, suave, uma conversa de mesa de bar. Gostei.

    Sérgio Néo

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  5. Que bom que você gostou, Sérgio Néo, adoro escrever crônicas.

    Este espaço está aberto para suas crônicas também. Estou organizando um grupo de crônicas para este blog. Topas?

    Se topar manda texto para meu e-mail, ok?

    Valeu,

    Kelsen Bravos

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  6. Caríssima Fã,

    Fiquei feliz com teu comentário. Mas quanto mistério em não se revelar...

    Aparece sempre com teus comentários, viu?

    Beijo azul,

    Kelsen Bravos

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