quarta-feira, 11 de abril de 2018

Idiossincrasias, ideologias, idiotias... - Chico Araujo*

Sentia-se estranho – desde a hora em que acordara? –, e não conseguia compreender o porquê daquela estranheza. Então refletia.

Ele, em verdade, era de pensamento brando, de comportamento manso, de visão de mundo conciliadora. Em suma, poderíamos ver nele postura pacífica em seu dia a dia. Pela soma de tudo, não seria exagero dizer-lhe uma pessoa tranquila, de boa índole, destituída de agressividade maléfica contra quem quer que fosse. Nada, então, que o encaminhasse à surpresa, ao espanto sobre ele. Naquela manhã, contudo, nasceu-lhe uma sensação de estar diferente.

Com visão distinta, havia, sim, alguns que faziam questão de imputar a ele traços de idiotia, por considerá-lo amorfo, molenga, covarde mesmo (é engraçado observar que em comum abundam interpretações inadequadas por quem não tem capacidade para um bom juízo). Um profundo engano, todavia, pois de idiota não tinha absolutamente nada.

Insisto: era apenas – e isso não é pouco – um pacificador, alguém sempre interessado em aproximar as pessoas – mesmo as conflitantes – em torno de coisas boas, positivas, alegres, além de buscar sempre a compreensão de tudo o que pudesse compreender. Devido a isso, o mais comum era encontrar em seu rosto sorriso aberto e, em sua boca, muitas vezes, o silêncio. No olhar, um brilho incomum. Quem não entendia nada disso, certamente não via seus bocados para a existência.

Pois quando o sol desvendou novo dia, porém, ele mesmo se sentia diferente daquilo acostumado a ser e não encontrava explicação para a inquietação abraçadora. Preparou-se aos moldes do costume, alimentou-se e partiu para o trabalho. No ônibus de toda manhã à mesma hora, ouviu de companheiro cotidiano compartilhador do mesmo horário, do mesmo veículo, da mesma rota:

- O que aconteceu? Está com uma cara! Parece sem alegria...

- Não sei dizer nem o que nem o porquê, mas acordei mesmo me estranhando hoje. Já quando olhei para o teto por mais tempo que o normal às minhas orações matutinas, atentei que fui dormir um, mas acordei outro. Nada específico me ocorre como motivo para isso; porém, há alguma coisa diferente mesmo, embora não saiba dizer o que seja.

- Olha, pelo que aprendi de você nesses meses todos de enfrentamento diário matutino nesse horário costumeiro e nessa rota repetitiva, algo de muito sério deve estar acontecendo, porque simplesmente é a primeira vez que encontro você sem um sorriso no rosto. Aliás, aprendi que você sorri com o rosto, com os olhos, com a boca, com os gestos, com as palavras, com as atitudes, com os passos... Você sempre é todo sorriso... É como se estivesse sempre em estado pleno de felicidade...

- Bem, obrigado por me entender assim desse jeito, que deve ser muito bom. Mas, sinceramente, não sei dizer o que seja. Sei que hoje não estou igual a como estava ontem até a hora de dormir.

- E pelo menos se lembra de algo que tenha acontecido antes de você dormir?

- Eu vi um filme...

- Sobre o quê? Pode existir nele algo perturbante, a ponto de mudar características tão marcantes suas...

- Bem, o filme não era um documentário, foi anunciado como ficção, mas bem que tem muito a ver com muita coisa que acontece todo dia. O espaço dele era o de uma cidade grande, então ele começou mostrando carros, ônibus, motocicletas, sinais de trânsito, também muitas buzinas eram ouvidas. As imagens mostraram por primeiro essa confusão de trânsito por avenidas e algumas ruas largas interligadas a elas. Depois mostraram muitas pessoas tentando atravessar essas ruas e avenidas, algumas com passos rápidos, outras correndo mesmo.

Também mostraram outras se esbarrando em calçadas, como se estivessem num formigueiro desorganizado. Intensamente e velozmente, pessoas vinham, pessoas iam. Ninguém se olhava, ninguém se conhecia, ninguém se falava... apenas andavam, apenas colidiam, quase todos de cabeça abaixada... Bem rápido tive a sensação de que aquela gente toda éramos nós... Aquela gente toda éramos nós todo santo dia... Logo uma angústia me bateu e fiquei sentindo que a gente que assiste aquelas cenas fica com a impressão de que aquela quantidade toda de pessoas não sabe para onde está indo. Se a gente se coloca dentro, a gente se pergunta: para onde vou? Para onde vamos nós todos?

- Isso tudo só no começo?

- Sim, só no começo... E não conseguirei lhe contar tudo. Vou falar só do fundamental, pelo menos para mim. Depois de visão sobre a cidade, aquele que entendi fosse o personagem principal aparece também caminhando no meio da multidão. A imagem começa por cima, mostrando a confusão de gente caminhando numa calçada e aí vai se aproximando dele, bem devagar, até pegar ele de frente e ficar acompanhando ele até ele bater em duas pessoas, pedir desculpas e seguir. Aí a gente vê o rosto dele. É um homem de meia idade, cabelos meio pretos meio brancos e tem um rosto muito fechado, muito sério, parecendo muito preocupado.

- Teu sósia hoje...

- Depois a câmera o abandona e passa a mostrar uma sala onde há pelo menos quinze pessoas, homens e mulheres, rindo, rindo muito, comemorando mesmo, debochando em suas risadas, enquanto apontam para esse homem, pois, na verdade, estão todos vigiando ele, todo passo que ele dá é visto por esse grupo. Aí, na televisão, a tela se divide no meio, radicalmente no meio, então são dois lados que ficam, e aí tanto o homem na rua quanto o grupo na sala são mostrados, ele caminhando sério, muito fechado em si mesmo, o grupo rindo, rindo, se acabando de rir. Galhofando. Troçando. Zombando. De repente o homem para em frente a um edifício onde está escrito Justice. Para, olha pra entrada, lê o letreiro e vai, devagar, olhando pra cima. A imagem vai mostrando seu olhar vagaroso e crescente pra parte de cima daquele imóvel. E de repente ela para no alto do prédio e a gente vê o fim dele se confundindo com a existência do céu. Fiquei numa ideia de que aquela imagem queria mostrar que o homem pode querer fazer justiça, sem jamais poder conseguir, pois não sabe como alcançá-la, como fazê-la. O homem não sabe ser justo, não sabe o que é justiça e por isso não consegue fazer a existência dela. Sem dar mais detalhes, sinto ser esse o ponto básico, central do filme: O homem não consegue realizar justiça porque não sabe o que ela é, o que ela significa nem o que é necessário para que exista. É algo além de sua compreensão; simplesmente, o homem não a alcança.

- Interessante.

- Inquietante.

- Então foi o filme o elemento de sua transformação?

A pergunta foi feita enquanto os dois amigos desciam do ônibus em uma parada que ficava exatamente em frente ao insinuante edifício de 33 andares em que trabalhavam.

- Talvez não ele exatamente. Talvez o fato de ele me fazer me lembrar de uma cena que vivo todo dia e que ainda não tinha percebido, alcançado, refletido sobre ela.

- Qual cena?

- Essa em que estamos agora.

- Essa?

- Olhe em volta. Vê a quantidade de pessoas passando aqui de um lado pra outro, cada uma seguindo pro seu destino que não se sabe qual é, quase todas de cabeça baixa, numa suposta reflexão que pode não ser reflexão? Vê que elas andam rápido como se não pudessem andar devagar, com tranquilidade, e por isso mesmo vão esbarrando umas nas outras? Vê que estamos em uma calçada larga no centro de uma cidade grande muito agitada? Escuta os barulhos das ruas, os motores dos carros, dos ônibus, das motocicletas, as buzinas deles? O filme talvez seja sobre mim, sobre você também. Olha esse prédio em que trabalhamos. Não tem nome na entrada, somente o número. Mas quando a gente olha daqui lá pra parte mais alta dele o que a gente vê é o fim dele como se chegasse perto do céu, o que é falso, impossível.

- Incrível! E onde você encaixa esse negócio aí da justiça?

- Em coincidências. A primeira está no fato dos 33 andares. A segunda está no fato de exatamente no andar 33 ficar um grande escritório de advocacia, aquele em que todos os advogados são considerados como sensacionais, fazendo eles crerem ser simplesmente maravilhosos, porque sempre realizam atos de justiça. A terceira é que, no andar abaixo, o 32, fica aquele enorme espaço de vigilância do prédio, daqui, da própria avenida, das ruas por perto. Há muitas câmeras espalhadas nessa região e elas capturam imagens que são vistas por muitas pessoas, homens e mulheres que se revezam em turnos pra ficarem olhando aqueles monitores sempre funcionando. Já estive lá algumas vezes fazendo limpeza e eles riam das pessoas filmadas nos monitores – dos cabelos, das roupas, do jeito de andar, do jeito de comer... – pessoas desconhecidas, mas motivo da alegria, da troça, da zombaria deles.

- ...

- Algumas dessas câmeras, caro amigo, estão sobre nós agora, nos investigando, nos vasculhando. E não duvido da existência de alguém, lá em cima, rindo de nós agora, troçando, pelo que somos, por sermos como somos, por vestirmos como nos vestimos, talvez até por estarmos aqui, parados em uma calçada, olhando pra cima, julgados estúpidos, enquanto pessoas ligeiras esbarram em nós...


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*Chico Araujo - professor, poeta, contista e compositor, publica toda quarta-feira no Evoé! O título "Hibridez na hibridização" compõe o Abecedário de Crônicas do Evoé e foi escrito entre 31/03 e 06 de abril de 2018. Leia mais Chico Araújo em Vida, minha vida...





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