quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

Crônica sobre uma mulher de rua - CHICO ARAÚJO*

No exato instante em que a vi, a mulher magra depositava toda sua necessidade de repouso em um colchão de caixa rasgada de papelão disposta sobre a calçada dura de um supermercado. Uma ironia, naquele meio dia. Fome e fartura, ladeados.

Quando a vi, o corpo estirado na cama improvisada e inteiramente acessível, um braço cobria seus olhos e ela não via, embora fosse de seu conhecimento, é certo, as revistas e jornais metaforicamente a seus pés, leituras expostas e sugeridas na banca bem ali existente. Muitos sarcasmos naquele culminante momento.

Há de se crer – eu creio – que esse tipo de leitura proposto por jornais e revistas não seja de seu interesse – ela, talvez compondo alguma estatística em alguma matéria nalguma daquelas revistas, nalgum daqueles jornais. A leitura que talvez fizesse deveria ser a de mundo: a de um mundo cego a ela, pois não a via, vendo-a; a de um mundo surdo a ela, pois não a ouvia, ouvindo-a; a de um mundo calado a ela, pois não a respondia – ignorava-a.

Muitos passávamos ali onde ela estava. Passávamos. Olhávamos. Seguíamos.

Ela poderá se chamar Ester. Ou Maria. Ou Madalena. Ou Francisca. Ou Ana. Poderá, poderia. Mas não importa; seu nome não importa.

Ela é magra e de repente abandona o suposto sono e se senta na beirada de sua dura cama. Passa a mão direita sobre os olhos e encara a vida.

Ela é magra. Seus cabelos presos são pouco longos, certamente mal descem aos ombros. Há um pouco de claridade neles e, da distância em que me encontrava dela, compreendi estarem sujos, endurecidos pela sujeira do não lavá-lo com frequência, por não banhar-se dia a dia.

Ela é magra e a magreza dela é quase amoldada a partir do desenvolvimento de fome por um não alimentar-se com adequação, por um não comer pelo menos três refeições a cada novo santo dia. Talvez também seja pelo consumo de alguma droga dentre essas muitas circulando em todo recanto da cidade.

Ela é magra e seu rosto tem uma incômoda expressão de quem precisa pedir, enquanto seu olhar – amarelecido? –, mesmo a certa distância, confessa e até precipita o momento exato em que a súplica se tornará um fato incontroverso.

Ela é magra e sua magreza desenha na boca imprevista forma que não pode ser sorriso, será mais uma retração de face enrugada e envelhecida, talvez um espasmo nascido no estômago para percorrer o corpo gritando sua necessidade de alguma comida para acalmar os roncos da bulimia.

Então, em rapidez admirável, põe de pé sua magreza e com ela caminha, desenvolta, para se colocar entre dois carros ali estacionados.

Aquela mulher, de posse de toda sua magreza, com agilidade espantosa para quem a espreitava, dá as costas à avenida, desce até os joelhos bermuda e calcinha em ato conjunto, agacha-se e urina entre dois carros no estacionamento de um supermercado.

Aquela mulher magra, cujo nome não importa saber, mija entre dois carros sem revelar qualquer indignação perceptível. Aquele lugar era seu banheiro, banheiro que ficava em seu quarto, sua suíte, cama e banheiro, bem próximos. Aquela calçada, sua casa. Uma casa sem portas, sem janelas, em vão único, aberto para tudo, até para as inseguranças da vida.

Uma leitura que se pode fazer é a leitura de mundo: a de um mundo cego a ela, pois não a via, vendo-a; a de um mundo surdo a ela, pois não a ouvia, ouvindo-a; a de um mundo mudo a ela, pois não a respondia – ignorava-a.

Muitos passávamos ali onde ela estava. Passávamos. Olhávamos. Seguíamos.

Muitos sarcasmos naquele culminante momento.

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*Chico Araujo (Sérgio Araujo) - publica toda quarta-feira no Evoé! O título "Crônica sobre uma mulher de rua..." foi escrito no dia 13 de outubro de 2017. Leia mais Chico Araujo no blog Vida, minha vida...

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