terça-feira, 23 de janeiro de 2018

O MONÓLOGO INTERIOR DIRETO NO FLUXO DA CONSCIÊNCIA LITERÁRIA - *Túlio Monteiro


A experimentação foi a linha central dos primeiros romances de fluxo da consciência!
Para uma apresentação descritiva satisfatória da consciência humana, houve necessidade da criação de novas técnicas de escrita. A vasta gama de possibilidades associada ao novo estilo que surgia gerou, em princípio, confusão no que dizia respeito à inclusão ou não, de uma determinada obra na categoria da ficção de fluxo da consciência. Preocupado com isso, Robert Humphrey lançou em 1954 Stream of Consciousness in the Modern Novel, no qual definiu os quatro tipos mais recorrentes de técnicas de fluxo da consciência: monólogo interior direto, monólogo interior indireto, descrição por autor onisciente e solilóquio.
Humphrey dividiu o monólogo interior em direto e indireto. Sendo que o direto sempre se evidencia pela não interferência do autor no desenvolvimento da trama, onde a personagem ignora a presença de uma plateia, nesse caso o leitor. Aqui o pensamento da personagem se revela ao leitor sem as tradicionais indicações de direção que o escritor costuma inserir na sua ficção. Termos explicativos como "pensou ele", "assim disse ela" ou " afirmou ele", que supõem a presença de alguém alheio à trama desaparecem por completo.
Torna-se conveniente esclarecer que a personagem em momento algum se dirige a outra pessoa. O que é lido deve ser percebido como um diálogo interior sincero da personagem consigo mesma, como se ela estivesse sozinha, teoricamente suprimindo-se a presença do leitor. O autor que utiliza-se do monólogo interior direto tem por objetivo final representar, através de palavras escritas, a consciência psicológica do ser humano, bem como suas diversas camadas e texturas.
Além do total "desaparecimento" do autor, que não deve desempenhar papel algum na trama, o texto deve sempre ser escrito em primeira pessoa, com os tempos verbais "misturando-se" entre si. Presente, passado e futuro fundem-se em aparente desconexão, compondo, assim, um monólogo interior direto. A personagem deve encontrar-se sozinha no ambiente. Caso ocorra a presença de outras personagens na cena, ela deve sempre acontecer de forma passiva, sem que as mesmas exerçam qualquer interferência sobre o desenrolar da trama.
A monotonia do cotidiano sertanejo e o ambiente desolado contidos em Vidas Secas, proporcionam um espaço perfeito para um romance fundeado nas técnicas de fluxo da consciência. A solidão do deserto nordestino e o isolamento humano causado pelas grandes distâncias geográficas, forneceram a Graciliano Ramos os ingredientes necessários à feitura de um excelente romance de tempo psicológico.
No entanto, quando Graciliano Ramos optou por suprimir quase completamente sua onisciência, excluiu de Vidas Secas os monólogos interiores diretos. Sendo o universo verbal das personagens profundamente limitado e a comunicação entre eles estar restrita a um mínimo indispensável de gestos e palavras. A presença de monólogos interiores diretos se tornaria algo extremamente inverossímil, uma vez que personagens dotados de tão limitado grau de conversação, necessariamente possuem uma mesma equivalência quanto ao grau de limitação mental. Consciente disso, Graciliano Ramos evitou os monólogos interiores diretos, artifícios literários que, se utilizados em Vidas Secas, certamente dariam ao livro um caráter demasiadamente artificial.   
Já em São Bernardo, Graciliano Ramos trabalha de forma diferente. Como bem exige o monólogo interior direto, esse romance é escrito em primeira pessoa. A linguagem psico-regionalista de São Bernardo reflete a problemática da desumanização à qual o homem capitalista necessariamente tem que se submeter quando decide que o “ter” é mais importante que o “ser”. Nesse livro, o latifundiário Paulo Honório expõe, ao longo de toda a trama, seus mais íntimos conflitos, onde mais uma vez o escritor percebe diante de si um riquíssimo cenário para a desenvolvimento de um romance moldado de acordo com as técnicas de fluxo da consciência, que só posteriormente seriam definidas. Fato que fortalece ainda mais a genialidade de Graciliano Ramos.
Proporcionando total “liberdade” de pensamento e atitude a Paulo Honório, o autor parece permitir que sua personagem adquira vida própria no decorrer da trama. À maneira de João Valério, personagem principal de Caetés, Paulo Honório decide-se por escrever um livro. Duas diferenças, no entanto, devem ser observadas: João Valério pretendia escrever um romance, portanto, uma ficção, enquanto Paulo Honório se detém numa espécie de autobiografia romanceada.
Utilizando-se novamente do artifício de um livro sendo escrito dentro de outro – desta vez de forma bem mais madura que em Caetés –, Graciliano obteve inúmeras possibilidades para a inserção de monólogos interiores diretos em São Bernardo. A “autonomia” desfrutada por Paulo Honório parece permitir que ele, sem nenhuma interferência do autor, possa caminhar livremente por entre suas introspecções, selecionando e escrevendo no papel, à maneira de um autobiógrafo ególatra, tudo o que lhe tem importância de ser lembrado.
O primeiro monólogo direto que pode ser encontrado em São Bernardo ocorre no momento em que Paulo Honório discute com Casimiro Lopes, seu braço direito, sobre as reformas iniciais da fazenda São Bernardo, que ele acabara de comprar:

Pensei que, em vez de aterrar o charco, era melhor chamar mestre Caetano para trabalhar na pedreira. Mas não dei contra-ordem, coisa prejudicial a um chefe.
  • Só? Tornou a perguntar Casimiro Lopes.
Apanhei o pensamento que lhe escorregava pelos cabelos emaranhados, pela testa estreita, pelas maças enormes e pelos beiços grossos. Talvez ele tivesse razão. Era preciso mexer-se com prudência, evitar as moitas, Ter cuidado com os caminhos. E aquela casa esburacada, de pareces caídas...         

Podemos facilmente perceber o diálogo interior que Paulo Honório mantém consigo. Apesar da presença de Casimiro Lopes, ele, ignorando o empregado e o leitor, detém-se em imaginar melhorias para a fazenda que acabara de adquirir.
Convencionaremos chamar marcas de pensamento, os verbos sublinhados que Graciliano Ramos utiliza para remeter o leitor ao que se passa na psique de suas personagens. Afirmemos que todas as vezes que surgirem verbos grifados nos excertos extraídos dos romances aqui analisados, esses serão chamados de marcas de pensamento, o que também poderá ocorrer com palavras substantivas. No exemplo acima, o verbo pensei por si mesmo já demarca o que afirmamos. Já o verbo apanhei, nem sempre poderá ser definido como uma marca de pensamento. Entretanto, no caso acima, ele pode ser assim considerado por estar antecedendo o substantivo abstrato pensamento que, evidentemente, faz referências ao discurso psicológico de Paulo Honório. Essa regra se aplica às quatro técnicas de fluxo da consciência definidas por Humphrey: monólogo interior direto, monólogo interior indireto, descrição por autor onisciente e solilóquio.
Um outro exemplo de monólogo interior direto contido em São Bernardo merece destaque.
Isolado em um cômodo de sua casa na fazenda São Bernardo, Paulo Honório continua a escrever seu livro de memórias. Aliás, é nesse cômodo que se desenvolve toda a trama deste romance de Graciliano Ramos. Paulo Honório, em momento algum se ausenta do local ou trava contato direto com outra personagem. Quando isso acontece, sempre se realiza no nível de sua consciência, limitando a ação do romance às recordações que a personagem transcreve nas páginas do livro que escreve. Isso pode ser comprovado já no parágrafo de abertura de São Bernardo: Antes de iniciar este livro, imaginei construí-lo pela divisão do trabalho.  
Voltemos ao monólogo interior direto do capítulo dezenove. Sentado à mesa, Paulo Honório dedica-se a recordar sua Madalena, recentemente falecida. Sempre que a sequência temporal muda do presente para o passado, Paulo Honório se encontra mergulhado em seu interior, ora recordando, ora questionando fatos ocorridos na sua vida. Esse discurso mental em forma de flashback sempre se caracterizará no São Bernardo, como um outro tipo de marca de pensamento. Ou seja, todas as vezes que isso ocorrer, o fluxo da consciência estará presente em uma de suas quatro variantes. Comprovemos isso no exemplo que se segue:

Procuro recordar o que dizíamos. Impossível. As minhas palavras eram apenas palavras, reprodução imperfeita de fatos exteriores, e as dela tinham alguma coisa que não consigo exprimir. Para senti-las melhor, eu apagava as luzes, deixava que a sombra nos envolvesse até ficarmos dois vultos indistintos na escuridão...
A voz dela me chega aos ouvidos. Não, não é aos ouvidos. Também já não a vejo com os olhos.    

Dois fatores são importantes para a constatação do fluxo da consciência: o verbo recordar é uma marca de pensamento, pois imediatamente remete o leitor, como já afirmamos antes, à mente, ao interior da personagem. Quando Paulo Honório afirma já não ver Madalena com os olhos, nem sua voz lhe chegar mais aos ouvidos, deixa bastante claro que isso ocorre em sua mente, no espaço destinado às recordações.
Esse fluxo mental truncado, o confinamento da personagem a um cômodo da casa e a narrativa em flashback, deixam claro que Paulo Honório está questionando a si mesmo sem perceber ou mesmo se importar com a presença de algum ouvinte, neste caso o leitor. Caso a presença do leitor fosse notada, não ocorreria aí um monólogo interior direto, mas, sim, um monólogo interior indireto.
Até a próxima semana!

NOTAS
1. HUMPHREY, Robert. Stream of Consciousness in the Modern Novel. Berkeley, University of Califórnia Press, 1954.
2, RAMOS, Graciliano. São Bernardo. 55ª edição, Rio de Janeiro: Editora Record, 1991, p. 28.
3. RAMOS, Graciliano. Idem. p.7.
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*Túlio Monteiro - escritor, biógrafo, pesquisador, revisor, ensaísta e crítico literário, publica todas as segundas aqui no Evoé! Leia também Literatura com Túlio Monteiro.

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