quarta-feira, 4 de outubro de 2017

O ponto agora é uma interrogação para adiante... - CHICO ARAUJO

18h. Um longo e cansativo dia de não-trabalho. 

Um não-trabalho é uma confirmação do não-homem. É importante ao espírito, à alma, a certeza da sensação boa de que se tem algo a fazer, na medida certa. O fazer além pode significar opressão, extrapolação do limite que deveria ser. A inexistência dele pode implicar o apagamento do ser, a supressão do humano. A fabricação do nada. O aniquilamento do que há... Ou do que havia... Ou do que haveria...

O trânsito. Ansioso. Lento. Desorganizado.

Fico pensando como uma coisa tão complexa pode ser tratada como uma coisa muito simples. Demitir trabalhadores, negando a eles a condição que tinham de continuar sobrevivendo é muito ruim. O que se faz com a família numa hora dessas? Como colocar a comida na mesa que precisa ter comida todo dia? E as outras contas pra pagar? Conta de luz, conta de água, o transporte... O filho que ia aniversariar e deveria ter uma festinha? Por mais pobrezinha que fosse, uma festinha serviria para reunir a família em torno de uma comemoração, os amiguinhos presentes e estreitando laços de amizade necessária... E a mulher que precisava de uma roupinha nova, as que tem já um pouco desgastadas? E os crediários feitos? E o aluguel da casa? Como resolver isso tudo e tanto mais?

O trânsito acalorando os corpos, apesar da noite já descida. Engarrafamentos sempre fazem a camisa suar. Tem também as buzinas agredindo os ouvidos. Horrível esse horário.

Se eu estou desse jeito, imagina quem foi dispensado. Como sair de casa cedo da manhã, empregado, e chegar em casa depois, sem o emprego? Como dizer isso a todos – mulher, filhos, parentes, amigos? Você se dedica tanto e depois, um belo dia, descobre que não significa nada para o patrão, só um valor a menos na contabilidade da empresa. Tudo porque na lógica dele o mais importante é sempre ganhar mais e mais e mais, mesmo que pra isso alguém ganhe menos, menos, menos... nada! A lógica é simples demais: “Os outros são os outros e só”.

Quanta demora! Quanta perda de tempo! Agora tem os buracos também e o sacolejado infernal. Quanto mais pobre, mais distante do trabalho é a casa. E pequena, quase sem conforto para abrigar muita gente quase sempre.

Tenho todos como meus amigos, todos vêm a minha casa e vou à deles. Estamos próximos, nunca admiti sermos distantes. Os filhos dos casados brincam juntos nas festas que fazemos. Como será agora? Assim que chegar em casa vou ligar pra cada um. Por que já não liguei, se passei o dia fazendo nada? Que utilidade eu tenho agora, sirvo mesmo pra quê? O dia todo sem fazer nada... Absolutamente nada! Existe alguma condição melhor entre ser posta pra fora ou ser mantido dentro e não fazer nada? Certamente há um preço nisso. Mas qual? O que estou fazendo, tendo a sensação de não estar fazendo? Patrão não paga pra funcionário ficar olhando pras paredes. Tem algo que eu não entendi, mas tem algo nessa história e eu tenho de descobrir.

Naquele calor e naquele aperto, ouvia pessoas reclamando de pisadas no pé, quando alguém passava para descer do coletivo. Os pedidos de licença eram quase em tom de angústia, uma sensação nervosa de que o motorista não esperaria que se vencesse toda aquela multidão para se descer na parada certa. Era uma lotação tão mais acima do completo que se ficava com a impressão de que em cada parada somente pessoas subiam, nenhuma descia. Não era a verdade, embora se subisse mais e se descesse menos. 

Finalmente chegou no seu ponto. E desceu – pisando os pés de muitos. E rumou para casa.

Por onde vou começar a história?

Arguto refletia enquanto olhava sua mulher que o esperava à porta de casa, hábito antigo, cotidiano. Por seu andar em caminho do lar, ela percebia se estava tudo bem, ou se havia algo a se conversar e dar caminho para se resolver. Certamente ela já notara peso nos passos, nuvem tempestuosa sobre a cabeça. 

Ele já sabia a única estratégia a ser posta em prática em situações como aquela: chegar-se a ela com olhar firme, sincero, dar-lhe um selinho, entrar na casa, sentar-se no sofá, receber um copo de água gelada e uma xícara de café fresquinho. Depois de sorver aqueles carinhos, só havia uma coisa a ser feita: falar.

Arguto respirou fundo, pontuando sua aflição, mas não se demorou no silêncio. Precisava falar, até para compreender melhor – assim refletiu – toda a situação que lhe envolvera desde o início da manhã.

A esposa, Sofia, já se sentara a sua frente, silente, atenciosa. Sem temor, ele construiu sua narrativa.

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Chico Araujo publica toda quarta-feira no Evoé! A crônica "O ponto agora é uma interrogação para adiante.." foi escrita entre os dias 28 e 30 de setembro de 2017. Leia mais Chico Araujo no blog Vida, minha vida...

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