sexta-feira, 30 de março de 2018

Galos, noites e quintais... - Kelsen Bravos*

Nesse 30 de março de 2018, aproveitei o feriadão para rever familiares e amigos em um lugar bucólico, daqueles de se acordar com o canto dos galos, aquecer-se junto a fogueiras ou a um fogão a lenha e se reunir em bate-papos sem fim nos quintais. Por tamanho prazer, ignorei avisos sobre a insegurança nas estradas, seja pelo péssimo estado de conservação em tempos de chuva ou quanto ao “salve geral” de facções do crime ameaçando motoristas de ônibus, caminhões ou carros comuns que ousassem se aventurar pelas rodovias cearenses. A despeito de tais recomendações, peguei a família e seguimos rumo oeste para aquela serra que ainda azula no horizonte, de onde despenca a cachoeira em que, segundo José de Alencar, se banhava Iracema - a famosa Bica do Ipu.

Redobrei minha atenção e cumpri pouco mais de 320 quilômetros, de muito boas e seguras rodovias (exceto as carroçáveis), entre Fortaleza e uma localidade bem no topo de Ipu. Um recanto que abriga famílias de agricultores no alto da Serra da Ibiapaba. Um lugar modesto onde se comprova o impacto, para o bem e para o mal, dos programas de transferência de renda com todas as suas contradições, com saldo, ao final das contas, de longe favorável aos benefícios. As mercearias todas bem sortidas e com os pagamentos em dia, a população bem vestida e saudável, assistida por escolas e posto de saúde que vinha até pouco tempo funcionando regularmente. Com os programas de financiamento, a agricultura familiar se muniu de implementos para seu cultivo, perfuração de poços artesianos (a seca chegou pesada também no alto da serra) e compra de tratores, caminhões para o escoamento da produção aos grandes centros e Capital. As motocicletas circulam a centenas em toda a região. Aspectos aparentes até ao olhar mais desatento.

Por outro lado, salta ao olhar mais crítico a falta de programas de cultura e de ampliação de lazer para população que, com um pouco mais de poder aquisitivo e sem uma referência de qualidade, adota os piores hábitos consumistas. Compra do fútil ao inútil. Chega-se ao cúmulo de consumir alimentos industrializados tendo à janela de suas casas laranjas, tangerinas, pitangas, seriguelas, mangas, bananas, abacates, cambuins, enfim uma sorte de frutas in natura e bem mais saudáveis.  Desprezam também a cozinha tradicional de origem local, uma delícia da qual não abro mão é o bolo manzape, uma iguaria tabajara feita com massa puba de mandioca, melaço de cana de açúcar, coco babaçu, envolvido na folha de bananeira e assado no forno da casa de farinha, onde também são produzidas da forma tradicional a goma e a farinha de mandioca, um alimento completo em tudo - em sabor e nutrientes.

Ao chegar, faço questão de me reunir com os mais velhos. A conversa vai do futebol à política. Sim, num tem essa bobagem de não se falar desses temas, eles se misturam sim e é muito bom falar deles. Há muito pouca dissidência quanto em quem votar para presidência da República. Todos são muito gratos aos benefícios dos governos de esquerda antes do golpe. Quanto ao futebol, as paixões pelo clube tal ou qual se esmaecem pelo consenso do Serrano - time composto pelos craques locais que, liderados por Francisco de Assis Moura – o Assisaço, todas as tardes se reuniam para jogar no campo de várzea até a hora do sol se pôr.

Saibam, pois, este time, forjado na fibra da lida agrícola, brilhou no campeonato intermunicipal cearense de forma vitoriosa, derrotou em amistosos grandes times profissionais do Estado. Uma geração que ainda joga um bolão pela seleção de veteranos. Hoje é rara, lamento, a prática do futebol ao fim das tardes. Uma tristeza o esporte não ser adotado pelas novas gerações, ocupada em hábitos, no mínimo, danosos.

Sem muitas alternativas de fruição social, uma geração perdida está em formação, pois suscetível ao “lazer” das bebidas alcoólicas, dos paredões de som e, infelizmente, do consumo de drogas (da “inocente” maconha ao inferno do crack). Tal realidade tem sido responsável pela dor de muitas famílias que veem os seus rebentos serem assassinados pela mão do tráfico, que gradativamente vem tomando conta de toda a Serra da Ibiapaba.

Converso também com a meninada. Adoram histórias e dizem ter esperança de ter uma biblioteca ativa - a da Associação de Moradores só está existindo no papel - que proporcione amplas leituras de mundo. A igreja católica é bem atuante, pode ser mais. Há o crescimento das igrejas neopentecostais que agregam fiéis, ao mesmo tempo que os segregam em torno de suas crenças. Acredito que a união do estado e segmentos sociais possam colocar no contexto social da região alternativas que unam as gerações e tenhamos, sem olhares lacrimosos da saudade, a emoção de viver, aos modos de hoje, a saudável realidade de galos, noites e quintais com os folguedos ainda bem vivos na memória do seu Luís Rosa, do Assisaço, da Dona Tarcisa, do Antôno Gaspar, do José Soares... e na esperança da garotada feito o Davi, a Letícia, a Clarisse, a Maria Júlia, a Ticiane e da novíssima geração do Miguel, do Samuel que ainda engatinha... Evoé!


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*Kelsen Bravos - professor, escritor, compositor, editor do Evoé!

9 comentários:

  1. A crônica vem ao encontro daquilo que conversamos ontem durante o jogo Fortaleza x Floresta, qual seja, o campo de futebo do Parque Iracema, aqui no Cambeba, abandonado pelo poder público, não consegue mais reunir jovens sedentos do desejo de jogar futebol, como ocorria nos idos 80, época de craques como Fernando "da Cobra", Gregório (ex-Ferrim), Gildo "Baladeira", Paulinho "Cuia", Gutinho, Sandoval, Tatá, Ostim e, evidentemente, Pantico, o melhor cabecedor que já surgiu por essas plagas. O tempo, a televisão, o crime e a droga, lícita e ilícita, acabaram com a diversão, com o sonho juvenil, uma geração inteira que já não mais se emocina, que deixou de sonhar, que vive a realidade nua e crua do consumir e que adotou o seguinte lema: Se é para viver 50 anos como operário, melhor viver 20 levando vida de playboy.

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    1. "melhor viver 20 levando vida de playboy"

      Meu Caro Frateramigo Pantico, meu irmão querido, que feliz lembrança a dos rachas de bola nos campos de espalhados pelos bairros. Não deve ter sido comigo a conversa durante o jogo Fortaleza e Floresta, pois eu estava na estrada de volta a Capital.

      Muito feliz também a observação do lema da juventude que ora se perde num viver como "playboy". Ora "playboy" é um avatar oco, sem passado e sem futuro e que vive o presente como uma máquina de fazer nada. Aquela em que se aperta um botão liga/desliga. Daí ela faz um barulho danado, se sacoleja toda feito um liquidificador sem base e sem nada dentro. Após algum tempo, para abre uma portinhola em si mesmo de onde sai uma mão com o indicador em riste que vai direto ao botão liga/desliga se autodetona. A quem interessa uma geração assim bovina, senão à sociedade de consumo que a põe no curral até o momento do abate?
      (Kelsen Bravos)

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  2. Pois é e tem tanto "gênio", defendendo a descriminalização das drogas..que apoiam verdadeiras apologias ao crime, como as famigeradas " marchas da maconha"....quando na verdade a maconha é tão somente a porta de entrada para drogas mais pesadas....mas a esperança sempre foi investir na educação...que ao que parece, perde espaço para outras prioridades....pois falando nas "esquerdas" , a luta a favor do aborto e da ideologia de gênero MB as escolas só aumenta...

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    1. A descriminalização da maconha é muito mais complexa do que a mera autorização para o consumo da droga. Precisamos avaliar bem questões como essa antes de fazer um juízo de valor. O álcool é bem mais danoso, embora não seja "marginal" das leis.

      A principal questão é a da Educação e da Cultura. Nenhuma sociedade cresce forte e saudável, se não tiver amplas educação e cultura, que sensibilizem para apreciação e prática das artes em suas mais diversas linguagens, sobremaneira a Literatura, que promovam o diálogo do indivíduo consigo mesmo, com as circunstâncias de seu contexto social e com o mundo, de forma crítica, proponente e libertária.

      Fico constrangido ao constatar em seu discurso, meu caro, o termo "ideologia de gênero" com o viés corrupto da interpretação fascista, a mesma que cunhou a expressão "escola sem partido", uma aberração social, que precisa ser isolada e tratada com urgência, pois é um vírus letal à sociedade, à democracia, à evolução humana: é fascista, fanática, alucinadamente fanática, uma aberração de tudo que seja bom senso.
      (Kelsen Bravos)

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  3. Fascismo...complexidade... autorização para consumo...pura balela Nobre escritor...meu .conhecimento sobre o tema de substâncias alucinógenas tipo tetra hidracannabinol e metil benzoil lecognoninnol e muita mais presente do que devaneios intelectuais...mas o que seria do mundo se não existisse os debates?

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  4. De fato, os debates são importantes; mas a eles prefiro o diálogo.

    Parabenizo-o pelo conhecimento das substâncias alucinógenas. Não creio, porém, caro dialogista Clauton, ser devaneio uma política de redução de danos junto a usuários de drogas. Não é devaneio e nem apologia o amplo estudo com base dm pesquisas empíricas da relação entre drogas e violência urbana, com certeza não são devaneios intelectuais. Se as autoridades instituídas dialogassem com mais respeito com especialistas avanços sociais bem positivos estariam compondo a realidade.

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  5. Meu trabalho junto aos adoslentes e jovens de nossas escolas públicas só me faz concordar cada dia mais, com Kelsen Bravos sobre a urgência de termos uma política de redução de danos continuada, que seja acompanhada de alternativas, de programas culturais,de oportunidades de diálogo e de ecombate à alienação. Conheço Kelsen há cerca de 15 anos e o que ele diz é baseada na experiência e na sensibilidade de quem fala e escreve para os jovens. Fé gente e muita energia pra sonhar e fazer acontecer. Assim e o Kelsen. Avoé amigo.
    Elvira Nadai

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  6. Creio que quando não temos possibilidade de sonhar e de alimentar dignamente esse sonhar somos impelidos a qualquer algo. Sei que não podemos nem devemos ignorar a realidade, mas não ter sonhos, não ter desejos, não ter perspectivas de futuro nos condena a imediatismos muito danosos. No Ipu, na Serra Grande, em qualquer lugar, sonhar dá ânimo para se buscar até um mundo melhor.

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  7. Amada amiga Elvira Nadai, você me é uma referência no trabalho com políticas sociais. Seu comentário me fortalece, me responsabiliza mais e me estimula a prosseguir com mais intensidade. Continuamos juntos,saiba, unidos pela mesma causa, embora cada um no seu torrão. Precisamos, entretanto, mais que nunca nos fortalecer adensando a luta unindo forças e ampliando nosso alcance. Um beijo azul, meu bem. EVOÉ!

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