domingo, 4 de fevereiro de 2018

DEFININDO OS MONÓLOGOS DE ROBERT HUMPREY - Túlio Monteiro*

Robert Humphrey lançou em 1954 Stream of Consciousness in the Modern Novel, no qual definiu os quatro tipos mais recorrentes de técnicas de fluxo da consciência: monólogo interior direto, monólogo interior indireto, descrição por autor onisciente e solilóquio.
O francês Édouard Dujandin determinou o monólogo interior como sendo a apresentação da fala interior de uma personagem sem a intervenção do autor, através de notas ou comentários no corpo do texto. Algo extremamente próximo do pensamento mais íntimo e próximo do inconsciente humano. Partindo desse princípio. Robert Humphrey definiu de forma mais simples e moderna o monólogo interior como sendo a técnica usada na ficção para representar o conteúdo e os processos psíquicos do personagem, parcial ou inteiramente desarticulados, exatamente da maneira como esses processos existem em diversos níveis do controle consciente antes de serem formulados para fala deliberada.
Deve-se observar, sobretudo, que se trata de uma técnica para representar o conteúdo e os processos psíquicos em diversos níveis de controle consciente: isto é, de representar a consciência. Convém salientar que poderá lidar com o consciente, no entanto, em qualquer nível (não obrigatoriamente, aliás, raramente é uma expressão do pensamento mais íntimo mais próximo ao inconsciente; e que se preocupa com o conteúdo além dos processos da consciência e não apenas com um deles. Convém observar, ainda, que é parcial ou inteiramente inarticulada, pois que representa o conteúdo da consciência em sua fase incompleta, antes de ser articulado em palavras deliberadas. Esta é a diferença que distingue completamente o monólogo interior do monólogo dramático e solilóquio usados no palco de um teatro.

O MONÓLOGO INTERIOR DIRETO

Humphrey dividiu o monólogo interior em dois tipos: direto e indireto. O direto sempre se evidencia pela não interferência do autor, onde a personagem ignora a presença de uma plateia, nesse caso o leitor. Aqui o pensamento da personagem se revela ao leitor sem as tradicionais indicações de direção que o escritor costuma inserir na sua ficção. Termos explicativos como "pensou ele", "assim disse ela" ou " afirmou ele", que supõem a presença de alguém alheio à trama desaparecem por completo.
Torna-se conveniente esclarecer que a personagem em momento algum se dirige a outra pessoa. O que é lido deve ser percebido como um diálogo interior sincero da personagem consigo mesma, como se ela estivesse sozinha, teoricamente suprimindo-se a presença do leitor. O autor que utiliza-se do monólogo interior direto tem por objetivo final representar, através de palavras escritas, a consciência psicológica do ser humano, bem como suas diversas camadas e texturas.
Além do total "desaparecimento" do autor, que não deve desempenhar papel algum na trama, o texto deve sempre ser escrito em primeira pessoa, com os tempos verbais "misturando-se" entre si. Presente, passado e futuro fundem-se em aparente desconexão, compondo assim um monólogo interior direto. A personagem deve encontrar-se sozinha no ambiente. Caso ocorra a presença de outras personagens na cena, ela deve sempre acontecer de forma passiva, sem que as mesmas exerçam qualquer interferência sobre o desenrolar da trama ou exerçam o poder da fala.
A monotonia do cotidiano sertanejo e o ambiente desolado contidos em Vidas Secas, por exemplo, proporcionam um espaço perfeito para um romance fundeado nas técnicas de Fluxo da Consciência. A solidão do deserto nordestino brasileiro e o isolamento humano causado pelas as imensas distâncias geográficas, forneceram a Graciliano Ramos os ingredientes necessários à feitura de uma grande obra de tempo psicológico.
No entanto, quando Graciliano optou por não suprimir-se de sua onisciência, excluiu de Vidas Secas os monólogos interiores diretos. No entanto, isso não aconteceu por acaso. Sendo o universo verbal das personagens profundamente limitado e a comunicação entre eles ser reduzida a um mínimo indispensável de gestos e palavras, a presença de monólogos interiores diretos tornar-se-ia algo extremamente inverossímil. Personagens dotados de tão limitado grau de conversação, necessariamente possuem uma mesma limitação de pensamentos. Sabiamente, Graciliano Ramos evitou os monólogos interiores diretos, artifícios literários que, se utilizados em Vidas Secas, certamente dariam ao livro um caráter demasiadamente artificial.   
Mas Graciliano queria escrever um romance de tempo psicológico, que abordasse o truncado diálogo mental do sertanejo brasileiro. Consequentemente, percebeu a necessidade da inclusão de monólogos interiores no seu livro. Em contraponto à ausência de monólogos interiores diretos, o escritor valeu-se de uma imensa quantidade de monólogos interiores indiretos para expor ao leitor a mente de suas personagens, fato que será comprovado durante a análise que faremos de Vidas Secas no texto que dará sequência a este e que tratará dos monólogos interiores indiretos.
São Bernardo é diferente. Como bem exige o monólogo interior direto, esse romance é escrito em primeira pessoa, sendo a cronologia temporal bastante confusa. A linguagem psico-regionalista de São Bernardo reflete a problemática da desumanização que o homem capitalista necessariamente tem que se submeter quando decide que o “ter” é mais importante que o “ser”. Nesse romance, o latifundiário Paulo Honório expõe, ao longo de toda a trama, seus mais íntimos conflitos e dissabores. Mais uma vez o escritor alagoano tem nas mãos um riquíssimo cenário para a desenvoltura de um romance moldado segundo as técnicas de Fluxo da Consciência.
Tendo dado total “liberdade” de pensamentos e atitudes a Paulo Honório, Graciliano permitiu que sua personagem agisse por “conta própria” no decorrer da trama. À maneira de João Valério, personagem principal de Caetés, Paulo Honório decide-se por escrever um livro. Duas diferenças, no entanto, devem ser observadas entre os livros aqui referidos: João Valério pretendia escrever um romance que nunca passou do primeiro capítulo, enquanto Paulo Honório inicia e conclui uma espécie de autobiografia romanceada muito bem dilapidada.
Utilizando-se novamente do artifício de um livro sendo escrito dentro de outro – desta vez de forma bem mais madura que em Caetés –, Graciliano obteve inúmeras possibilidades para a inserção de monólogos interiores diretos em São Bernardo. A “autonomia” desfrutada por Paulo Honório permitiu que ele, sem nenhuma interferência do autor, pudesse caminhar livremente por entre as suas introspecções, selecionando e escrevendo no papel, à maneira de um autobiógrafo ególatra, tudo o que lhe parecia ter importância de ser lembrado.
O primeiro monólogo direto que pode ser encontrado em São Bernardo ocorre no momento em que Paulo Honório discute com seu braço direito, Casimiro Lopes, sobre as reformas iniciais da fazenda São Bernardo, que ele acabara de comprar:

Pensei que, em vez de aterrar o charco, era melhor chamar mestre Caetano para trabalhar na pedreira. Mas não dei contraordem, coisa prejudicial a um chefe.
Apanhei o pensamento que lhe escorregava pelos cabelos emaranhados, pela testa estreita, pelas maçãs enormes e pelos beiços grossos. Talvez ele tivesse razão. Era preciso mexer-se com prudência, evitar as moitas, Ter cuidado com os caminhos. E aquela casa esburacada, de pareces caídas...         

Podemos facilmente perceber o diálogo franco que Paulo Honório mentalmente mantém consigo. Apesar da presença de Casimiro Lopes, ele, ignorando o empregado e o leitor, detém-se em imaginar melhorias para a fazenda que acabara de adquirir.
Convencionaremos chamar marcas de pensamento, os verbos que Graciliano Ramos utiliza para remeter o leitor ao que se passa na psique de suas personagens. Todas as vezes que surgirem verbos grifados nos excertos extraídos dos romances aqui analisados, esses serão chamados de marcas de pensamento, o que também poderá ocorrer com palavras substantivas. No exemplo acima, o verbo pensei por si mesmo já demarca o que afirmamos. Já o verbo apanhei, nem sempre poderá ser catalogá-lo como uma marca de pensamento. Entretanto, no caso acima ele pode ser assim considerado por estar antecedendo o substantivo abstrato pensamento que, evidentemente, faz referências ao discurso psicológico de Paulo Honório. Essa regra se aplica às quatro técnicas de Fluxo da Consciência definidas por Humphrey.
Um outro exemplo de monólogo interior direto contido em São Bernardo merece destaque.
Isolado em um cômodo de sua casa na fazenda São Bernardo, Paulo Honório continua a escrever seu livro de memórias. Aliás, é nesse cômodo que se desenvolve toda a trama deste romance de Graciliano Ramos. Paulo Honório, em momento algum se ausenta do local ou trava contato direto com outra personagem. Quando isso acontece, sempre se realiza no nível de sua consciência, limitando a ação do romance às recordações que a personagem transcreve nas páginas do livro que escreve. Isso pode ser comprovado já no parágrafo de abertura de São Bernardo:

Antes de iniciar este livro, imaginei construí-lo pela divisão do trabalho.  
Voltemos ao monólogo interior direto do capítulo dezenove. Sentado à mesa, Paulo Honório dedica-se a recordar da esposa Madalena, recentemente falecida. Sempre que a sequência temporal muda do tempo presente para o passado, Paulo Honório encontra-se mergulhado em sua psique, ora recordando, ora questionando fatos ocorridos na sua vida. Esse discurso mental em forma de flashback sempre se caracterizará, no São Bernardo, como um outro tipo de marca de pensamento. Ou seja, todas as vezes que isso ocorrer, o Fluxo da Consciência estará presente em uma das quatro variantes. Comprovemos isso no exemplo que se segue:

Procuro recordar o que dizíamos. Impossível. As minhas palavras eram apenas palavras, reprodução imperfeita de fatos exteriores, e as dela tinham alguma coisa que não consigo exprimir. Para senti-las melhor, eu apagava as luzes, deixava que a sombra nos envolvesse até ficarmos dois vultos indistintos na escuridão...
A voz dela me chega aos ouvidos. Não, não é aos ouvidos. Também já não a vejo com os olhos.    

Dois fatores são importantes para a constatação do Fluxo da Consciência: o verbo recordar é uma marca de pensamento, pois imediatamente remete o leitor, como já afirmamos antes, à psique da personagem. Quando Paulo Honório afirma já não ver Madalena com os olhos, nem sua voz lhe chega mais aos ouvidos, deixa bastante claro que isso ocorre em sua mente, no espaço destinado às recordações.
Esse fluxo mental truncado, o confinamento da personagem a um cômodo da casa e a narrativa em flashback deixam claro que Paulo Honório está questionando a si mesmo sem perceber ou mesmo se importar com a presença de algum ouvinte, neste caso o leitor. Caso a presença do leitor fosse notada, não ocorreria aí um monólogo interior direto, mas, sim, um solilóquio. Sobre essa técnica de Fluxo da Consciência oportunamente discorremos mais adiante em estudo a ser publicado na próxima segunda-feira. Sigam meus textos, pois!

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*Túlio Monteiro - Escritor e crítico literário, publica todas as segundas aqui no Evoé! Leia também Literatura com Túlio Monteiro.


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