sábado, 18 de fevereiro de 2017

CARTA AOS QUE FAZEM OS COLETIVOS DE JUVENTUDE E ARTE DA CIDADE! - Fabiano dos Sntos Piúba*

Ontem, 17 de fevereiro de 2017, numa manhã chuvosa de sábado, tivemos uma roda de escuta/conversa da Secult com coletivos de juventude e de cultura. Foi tenso e intenso. Forte e vibrante. Contente e potente como é a juventude que faz acontecer a arte nas veias e vielas das periferias de Fortaleza. O encontro iniciou com uma intervenção artística muito impactante sobre a dura realidade da vida desses jovens com suas atividades culturais nas comunidades onde moram e atuam. Munidos de raiva mesclada com muito amor, apresentaram para a Secult uma pauta de ação cultural no sentido de potencializar o que eles já realizam independente e apesar do estado. Saímos arrebatados do Teatro Carlos Câmaras com uma agenda conjunta. O encontro foi uma espécie de “Se intera, Secult!” Agora estamos com uma responsa de rochedo e não podemos falhar. Na noite anterior escrevi uma carta para a moçada. Mas, depois de ontem, outra já está burilando na minha cabeça. Por hora, compartilho a primeira Carta:

CARTA AOS QUE FAZEM OS COLETIVOS DE JUVENTUDE E ARTE DA CIDADE
Fortaleza, 17 de fevereiro de 2018
Teatro Carlos Câmara, Roda de escuta/conversa da Secult com os coletivos

Caros e caras amigos e amigas dos coletivos de juventude, arte, cultura e saraus da cidade.

Existe uma topografia poética que está sendo descrita na superfície das periferias da Grande Fortaleza. Uma topografia visível e invisível, dizível e indizível. É preciso mais que olhos para enxergar seu relevo. Um caminho possível é por meio da experiência. Somente se enveredando nas entrelinhas e bifurcações da cidade é que podemos perceber essa topografia poética. São meninos e meninas dos coletivos de juventude e cultura das periferias que estão escrevendo golpe a golpe, verso a verso, palmilhando essa topografia com seus corpos vibrantes e espíritos livres que existem e resistem, que vivem e sobrevivem, que passam e transpassam por entre os tiros e homicídios que rasgam a cidade.

Vocês resistem com poesia, no sentido de que poesia é transformar uma coisa em outra. Os coletivos vêm tentando transformar suas realidades entre o medo da morte e a esperança da vida, acreditando na força das palavras e das artes como se elas fossem coletes à prova de balas. São frágeis e vulneráveis ao tempo que fortes e vigorosos, num paradoxo desconcertante e uma potência encantadora. Jovens que acreditam na arte porque, de alguma forma, ela mudou suas vidas e maneiras de ver, ser e estar no mundo. Ou, como dizem alguns de vocês: a arte nos salvou. Pode até ser que a arte possa salvar alguém. Gosto de pensar que ela nos expande. Ferreira Gullar escreveu que “a arte existe porque a vida só não basta”. Pois é, a vida só não basta, a educação só não basta, a assistência social só não basta, a segurança pública só não basta. Colocamos arte e a cultura nesse caldo ou estamos perdidos. E a barra está pesada. Ouvindo alguns de vocês, percebemos uma consciência que estamos numa luta quase perdida. Mas essa consciência é seguida por uma outra mais forte. É preciso resistir e converter a ordem. Chamou-nos atenção também o fato dessa resistência ser guarnecida de afeto, ternura e amor. Tem a batalha, tem o corre, tem a luta, tem a guerra, mas vocês resistem com ternura, afeto e amor. Ouvimos do Alécio D’leste do Coletivo Natora uma coisa que ilustra bem esse sentimento: “Ser integrante de um coletivo de juventude é ter um cuidado, uma prevenção de vidas através do afeto”.

Os saraus e rolés, talvez, sejam as traduções com maior relevo dessa topografia poética. A rapaziada canta rimas, colore muros e declama seus próprios poemas escritos sobre a realidade que mora dentro de suas almas e ao redor de seus corpos juvenis. E não é somente a tal realidade nua e crua. Esses jovens estão guarnecidos de metáforas e de versos potentes, afiados como pontas de lápis, afinados como guitarras e redondos como vinis rodando no prato da picape, traduzindo com literatura, música e cor uma realidade escancarada em suas ruas e portas. Muitas vezes, o andamento de seus versos lembram o ritmo alucinante de tiroteios, um cortejo cadente do maracatu, uma rima de rap e repente ou um suingue de reggae. Noutras, o silêncio depois de um corpo abatido ou o compasso de um pássaro feito de nuvens atravessando o poente na Praia de Iracema, atraindo nosso olhar para o lado oposto da avenida Beira-Mar.

No contrafluxo da sedução e cooptação por parte das tais facções, vocês realizam saraus literários e musicais por entre vielas, becos, praças – quando estas existem – e nos próprios espaços que chamam de nárnias – suas sedes que são lugares distintos e encantados. Leem livros, capturam textos na internet e declamam seus poemas e canções – como pães saídos da fornalha – escritos em folhas avulsas, em telas de celulares ou ditas no calor da hora porque já sabem de cor o corre do texto. Com as cordas da memória e do coração.

Mas o fato é que agora essa meninada está também ameaçada. Seus saraus e poesias não são vistos com bons olhos pelo crime organizado nem pela polícia. Em uma reunião com os coletivos que compõem o projeto É o Gera de ocupação cultural do Teatro Carlos Câmara, ouvimos Gabriela Savir do Ocupa Cajueiro dizer: “Tivemos que nos recolher e isso está destruindo a gente por dentro”. Ou de Roni, do mesmo Coletivo, “o trabalho está despedaçado, quebrado”.Depois numas mensagens recentes com Alécio D’leste ele nos escreveu: “Estamos cansados, mas resistimos e existimos, acreditamos na arte”. Diante disso, o que podemos fazer enquanto cidadãos? O que podemos realizar como política pública?

A cidade já não se faz com olhares do centro para periferia, da Aldeota para o Jangurussu, da Praia de Iracema para o Bom Jardim, das Academias para as Ruas. Os olhares higienistas, colonizadores e reguladores nunca couberam e jamais caberão. Existe uma dinâmica própria orgânica, criativa, produtiva e pensante nas periferias que os modelos e parâmetros iluministas já não dão conta sozinhos. Aliás, nunca deram.

Ninguém vê o pôr do sol olhando para a Aldeota. Para contemplá-lo temos que mirar pro lado do Pirambu e, depois dele, a Barra do Ceará, espraiando nossos olhos numa geografia que se estende para além da cidade vertical, girando e girando em 360 graus por Antônio Bezerra, Grande Bom Jardim, Jangurussu, Grande Messejana, Edson Queiroz, Vicente Pinzon, Poço da Draga, Oitão e tudo que há entre eles. A cidade que nos interessa e nos toca é a periferia. Ver e sentir essa topografia poética implica em mirar outras margens. Como disse certa vez o professor André Haguette, “temos que nos aproximar da periferia por questões éticas e não por medo”.

Retirando do contexto em que foi dita – numa plateia sensível de classe média com elevado poder aquisitivo – provocaria a frase do professor dizendo: temos que vivenciar a periferia por questões éticas e estéticas e não pelo medo de uma cidade apavorada. Fortaleza não é uma cidade violenta. Fortaleza está sendo uma cidade violentada. Portanto, não se trata apenas de uma aproximação ou relacionamento. No âmbito da política pública, a juventude da periferia tem que ser parte central de sua construção e não meros beneficiários. Como nos disse Alécio, “não é ser só assistido, é ser parte da política pública com a participação da periferia dentro da decisão”.

Então, o que podemos propiciar como política pública de cultura? Que os jovens da periferia construam conosco, que sejam parte central dessa construção. Existe um mantra na Secult em que afirmamos que política pública não se conjuga na primeira pessoa, ela é uma construção social e coletiva. Mas esse mantra não pode ser compreendido como algo dado. Ele só se faz no exercício pleno e cotidiano de democracia. Fora disso é só um discurso vazio. Acreditamos que estamos aqui exercitando a democracia.

Não temos receitas nem modelos totalizantes. Não temos um edital pronto e, talvez, esse instrumento não seja suficiente nem dará por sim conta desse contexto. A verdade é que estamos um tanto atordoados com todo esse contexto social complexo de difícil compreensão para definição de ações no sentido de transformar e qualificar essa realidade com políticas públicas democráticas e acertadas. Tampouco temos a ilusão de que ações artísticas e culturais isoladas serão a salvação. Sabemos também que sem ações integradas e políticas intersetoriais não se chega ao longe, embora tenhamos a convicção de que segurança pública sem cultura é só violência, assim como educação sem cultura é só adestramento e assistência social sem cultura é só assistencialismo.

Como estávamos dizendo, não temos receitas e, tampouco somos iluministas que trarão “luzes” para as “trevas” com projetos mirabolantes e salvadores. As luzes são vocês, jovens das periferias com seus coletivos e saraus que fazem acontecer independente e apesar do Estado. Estamos hoje aqui para ouvir, ou melhor, escutar. Parar para escutar. Parar para sentir. Parar para conversar. Parar para pensar caminhos possíveis. O nome disso é experiência, pois exige um percurso e uma travessia. De como podemos reconhecer, potencializar e dar dignidade às iniciativas, projetos e ações orgânicas dos coletivos de juventude e de cultura que estão sentido, pensando, pulsando, escrevendo, cantando, dançando, desenhando uma topografia poética de alto-relevo social, cultural e humano pelas quebradas da cidade. E, a essa topografia, não cabe nenhum tipo de regulamentação. Nossa desejo e meta é chegarmos a um tempo e afirmação de que o precisamos é de menos polícia e mais poesia.

A cultura e a arte são caminhos possíveis de humanização e de reinvenção de mundos. Gosto muito dessa imagem: a arte como um caminho possível. Parece-nos que é isso que os coletivos de juventude estão fazendo com essa topografia poética que vem sendo escrita nas periferias da cidade, longe das pautas dos programas violentos da televisão, dos noticiários de horários nobres das rádios, TVs e jornais, longe da percepção do poder público. Mas vocês estão aqui e estão lá, estão ali e acolá, golpe a golpe, verso a verso, contrapondo o “tempo de violência” com “tempos de cultura”** com toda a vibração de seus corpos e espíritos de jovens livres, libertários, guerreiros, afetuosos e amorosos.

Que nós da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará (Secult) possamos escutar, conversar, aprender, confabular, experienciar e compartilhar essa topografia poética no sentido de construirmos uma política cultural para juventude, compreendo o direito à cultura como fator indispensável de humanização e o direito à cidade como o direito de reinventá-la. A partir daqui, vamos juntos construir ações concretas para potencializar as existências e resistências dos coletivos e saraus e de como dialogamos com as outras políticas públicas. Para nós da Secult, hoje é um dia de muita força e potência. Como nos contou Monique Souza, essa nossa roda de escuta/conversa “será um momento caloroso, mas é do caos que nascem as estrelas”. Nossos ouvidos e olhos, nossos mentes e corações estão abertos e atentos. Caminhemos, pois já escreveu o poeta espanhol Antonio Machado, “Caminhante não há caminho / se faz o caminho ao andar / golpe a golpe, verso a verso”.

Abraços ternos e calorosos,

Fabiano dos Santos Piúba


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*Fabiano dos Santos Piúba - é doutor em educação, poeta, compositor e secretário da Cultura do Ceará. A carta aos que fazem os Coletivos da Juventude e Arte da Cidade, foi publicada originalmente no perfil do FaceBook de Fabiano dos Santos Piúba.


** A expressão “tempo de cultura versus tempo de violência” foi dita por Eudoro Santana e tem servido de mote para pensarmos as políticas culturais no meio desse contexto social em que estamos envolvidos.

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