segunda-feira, 13 de novembro de 2017

INTERTEXTUALIDADE: UM FENÔMENO DA GLOBALIZAÇÃO? - Túlio Monteiro*

Tudo está dito, e chegamos tarde demais, há mais de sete mil anos que há homens e que pensam.
( La Bruyère )

Imaginemos que tudo o que lemos, ouvimos, vimos e até produzimos no nosso cotidiano já possa ter sido dito, escrito e produzido antes. Consideremos que nossos discursos, quer sociais, políticos ou acadêmicos, apesar das conotações bem particulares que lhes damos, estão repletos de concepções e influências de um infindável número de pessoas e culturas. São conhecimentos adquiridos por anos a fio através de nossos pais, amigos, parentes, livros, filmes, viagens que fizemos. Será difícil admitirmos que nossa individualidade não é, por assim dizer, tão individual como imaginávamos e que nosso conhecimento de Mundo, absorvido ao longo de anos de aprendizado árduo nos dá, no máximo, sutis diferenciações entre nós e o resto de nossos semelhantes, nos fazendo chegar à dificílima constatação de que não somos tão “inéditos” quanto pensávamos ser. Dói, não é?
Se entre nós é assim que se processam as diferenciações, o que dizermos da Literatura, tão rica em conhecimentos e possibilidades, mas tão infinitamente menor que a natureza humana? Analisando-se o problema por esse prisma, torna-se impossível esperar que haja textos completamente originais, livres de interligações com outras produções de escrita ou mesmo com o contexto sócio-político-cultural em torno do qual eles giram.
Foi seguindo esta linha de raciocínio que nos anos 1960, a crítica francesa Júlia Kristeva, fundamentada nos conceitos e estudos deixados pelos formalistas russos Mikail Bakhtin e Tinianov, concebeu a noção teórica da intertextualidade: “Todo texto é absorção e transformação de uma infinidade de outros textos”. Naquele momento, Kristeva concedia formalização teórico-crítica à noção do dialogismo do formalista russo Mikhail Bakhtin, real precursor da intertextualidade tal como ela é conhecida hoje.
Nesse estudo, levaremos em conta o conceito bakhtiniano de que o dialogismo a ser considerado é o do diálogo entre vários textos culturais, diálogo este que se instala no interior de cada um desses textos para defini-los. Esse sentido de dialogismo é o mais conhecido e apontado como o fio tecedor-mor das investigações de Bakhtin.
A partir da segunda metade do século XX, a Teoria da Intertextualidade, segundo as definições elaboradas por Julia Kristeva, foi amplamente difundida entre os estudiosos da literatura comparada como um instrumento ideal para dar novos direcionamentos aos estudos dos conceitos de origem e influência.
Segundo suas concepções, a intertextualidade é uma teoria totalizante da escrita, unificando as relações dessa com o sujeito, a ideologia e o inconsciente dentro de uma perspectiva semiótica. Julia Kristeva identifica de forma completa o sujeito e o processo de significação, onde a resolução do problema das relações entre texto e processos semióticos que nesse ambiente se articulam é a forma mais eficiente de explicar como se constrói o “sujeito” ou a ausência deste.
Ao elaborar seus conceitos sobre intertextualidade, a crítica francesa fundamentou-se nas reflexões e propostas apresentadas por Bakhtin no A Poética de Dostoiévski, motivo pelo qual direcionaremos as análises aqui inseridas a partir  das interpretações e definições efetuadas por Júlia Kristeva sobre os estudos de Bakhtin.
Antes, no entanto, faz-se necessária uma breve abordagem sobre os estudos de Bakhtin, situando-o, pois, no cerne da teoria literária.
Bakhtin foi o primeiro formalista russo a procurar substituir a estrutura estática e entediante dos textos típicos de sua época, por um modelo onde o surgimento de um texto dá-se a partir de sua relação com outros textos. Essa metodologia só se tornou possível em virtude da concepção de Bakhtin do que vem a ser a palavra literária, devendo-se entender por “palavra” a ideia de surgida de um enunciado como uma ciência da linguagem, definida por ele como ciência translinguística. Esse conceito, aliado às definições bakhtinianas de diálogo e ambivalência, deram origem à teoria do dialogismo, indiscutivelmente o marco inicial da teoria da intertextualidade tal como ela é conhecida hoje.
Segundo Bakhtin, a palavra escrita é a unidade mínima da estrutura literária e nunca pode ser tomada como um sentido fixo, mas, sim, deve constituir-se num embricamento de superfícies textuais, transformando-se assim, após somadas umas às outras, em um diálogo permanente entre variadas escrituras e leituras: as produzidas pelo escritor, pelo destinatário e pelos contextos atual e anterior, situando-se, pois, o texto no âmbito da História e da sociedade.
Sabedor de que a palavra poética ultrapassa os limites de um único significado, adquirindo conotações de plurivalência e plurideterminação, afastando-se assim do discurso codificado, Bakhtin encontrou as raízes dessa lógica no discurso carnavalesco, uma vez que este, ao romper as leis da tradicional linguagem limitada pela semântica e pela gramática, explicita contestações de cunho político, cultural e social. Sendo, pois, a linguagem poética, uma contestação do código linguístico oficial.
Para Bakhtin, analisar o estatuto da palavra significa analisar suas articulações, enquanto um complexo sêmico, com outras palavras da frase, buscando encontrar as mesmas relações no nível das articulações de sequências maiores. Desse raciocínio, surge uma concepção espacial do funcionamento da linguagem, assim como sua própria lógica correlacional. Deste espaço surgem três dimensões nas quais se realizarão as operações dos conjuntos sêmicos e das sequências poéticas: a dimensão do sujeito da escritura as produzidas pelo escritor, pelo destinatário e pelos contextos atual e anterior, situando-se, pois, o texto no âmbito da História e da sociedade.
Sabedor de que a palavra poética ultrapassa os limites de um único significado, adquirindo conotações de plurivalência e plurideterminação, afastando-se assim do discurso codificado, Bakhtin encontrou as raízes dessa lógica no discurso carnavalesco, uma vez que este, ao romper as leis da tradicional linguagem limitada pela semântica e pela gramática, explicita contestações de cunho político, cultural e social. Sendo, pois, a linguagem poética, uma contestação do código linguístico oficial.
Para Bakhtin, analisar o estatuto da palavra significa analisar suas articulações, enquanto um complexo sêmico, com outras palavras da frase, buscando encontrar as mesmas relações no nível das articulações de sequências maiores. Desse raciocínio, surge uma concepção espacial do funcionamento da linguagem, assim como sua própria lógica correlacional. Deste espaço surgem três dimensões nas quais se realizarão as operações dos conjuntos sêmicos e das sequências poéticas: a dimensão do sujeito da escritura, a do destinatário e a dos textos exteriores, onde essas três dimensões dialogam permanentemente entre si.
Para aquele formalista russo, o estatuto da palavra obedece a uma hierarquia horizontal e outra vertical. Na primeira, a palavra dentro do texto pertence simultaneamente ao sujeito da escritura – o autor –  e ao destinatário, sem levar em conta nenhum outro fator, mas apenas o texto em si. Já na segunda, essa mesma palavra está orientada para o corpus literário anterior, onde a influência do que foi escrito antes deve ser sempre levada em conta e analisada.
Bakhtin define estes dois eixos como diálogo e ambivalência, onde o diálogo designa a “linguagem assumida como exercício pelo indivíduo”. Segundo ele, para que as relações de lógica e significação possam ser dialógicas, elas devem se tornar primeiro discurso para depois obter um autor do enunciado. O diálogo não é apenas uma linguagem assumida pelo sujeito, mas também uma escritura na qual sempre se poderá ler outros sujeitos. Desse posicionamento, decorre a concepção do dialogismo de Bakhtin:  a da escritura como subjetividade e comunicabilidade. Concepção essa que Kristeva viria a "digerir" e definir como Teoria da Intertextualidade.
Já a ambivalência, uma das molas-mestras da intertextualidade, diz respeito à inserção da História e da sociedade no texto ora produzido e desse mesmo texto na História. Bakhtin considera qualquer escritura como uma leitura de textos anteriores, onde um novo texto que surge absorve e replica textos anteriores.
Para Bakhtin, a palavra do texto que ora é escrito, nada mais é que o cruzamento das palavras contidas em textos anteriores, onde podem ser lidas outras novas palavras. Simplificando, as palavras utilizadas para a criação de um novo texto são sempre retiradas de textos já existentes. No entanto, a reorganização lógica dessas palavras, de acordo com o desejo do seu autor, faz surgir um "novo" texto. Palavras de Bakhtin:

Todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto. Em lugar da noção de intersubjetividade, instala-se o da intertextualidade e a linguagem poética lê-se, pelo menos, como dupla.

Foi a partir desses conceitos e posicionamentos bakhtinianos que Júlia Kristeva elaborou suas definições sobre a teoria da intertextualidade.
A noção de texto para Júlia Kristeva é bastante ampla, onde a linguagem sempre será sinônimo de um “sistema de signos”, quer se trate da linguagem oral, de obras literárias ou de sistemas simbólicos inconscientes ou sociais.
Para Kristeva, a linguagem poética de que trata Bakhtin é uma única infinidade de códigos, onde o texto literário além de ser um duplo entre escritura e leitura, é também uma rede quase inesgotável de conexões. Esse mesmo texto literário insere-se no conjunto dos textos, nada mais sendo que uma escritura-réplica destes textos. Através do seu estilo de escrita e do corpus literário anterior, o autor estará navegando pela história e escrevendo no seu texto a sociedade da qual faz parte.
Kristeva faz questão de ressaltar a significação do verbo ler para os antigos:

“Ler” era também recolher, colher, espiar, reconhecer os traços, tomar, roubar. “Ler” denota, pois, uma participação agressiva, uma expropriação ativa do outro. “Escrever” seria o “ler” convertido em produção, indústria: a escritura-leitura, a escritura paragramática seria a aspiração de uma agressividade e de uma participação total.

Essa linguagem poética nada mais é que um diálogo, um intercâmbio entre textos, duplamente direcionados para as reminiscências (evocações de outras escritas) e para o ato somatório decorrente desse intercâmbio. Desse modo, um livro sempre remeterá a outros livros, sendo que o processo dialógico e o processo de intercâmbio conferirão àquele "novo" livro à sua própria significação e um relativo “ineditismo”.
Por esse prisma, o texto literário transforma-se em um sistema múltiplo de conexões. Para Kristeva, esse múltiplo sistema de conexões é uma rede paragramática, um modelo não linear de elaboração da imagem literária. Ou seja, uma plurideterminação do sentido na linguagem poética.
Alguns anos após a divulgação dos estudos e definições de Júlia Kristeva, Laurent Jenny, aperfeiçoou alguns conceitos da teoria da intertextualidade da crítica francesa. Para Jenny, o sentido escrito da intertextualidade não possui nenhuma relação com a chamada crítica das fontes:
a intertextualidade não é uma adição confusa e misteriosa de influências, mas o trabalho de transformação e assimilação de vários textos operado por um texto centralizador que mantém o comando do sentido.
Segundo Jenny, deve-se sempre reconhecer a presença de outros textos em toda e qualquer obra escrita, onde o trabalho de modificação dos textos criados a partir produções escritas anteriores deve ser identificado como o da criação de um novo texto que absorve toda uma gama de multiplicidades literárias anteriores, centralizando em seu corpus um sentido unificado.   
Teremos, então, três elementos básicos na teoria de Jenny: 

- O intertexto, ou seja, o novo texto que acabou de ser criado;
- O enunciado estranho que foi incorporado ao intertexto;
- E o texto ou textos anteriores de onde este enunciado estranho foi extraído.

Em termos mais simplificados, isso significa dizer que, ao analisarmos uma obra literária devemos procurar, num primeiro momento, avaliarmos as semelhanças que permanecem entre o texto transformador e o seu ou seus textos de origem. E num segundo momento, verificarmos de que modo esse texto transformador – leia-se intertexto – absorveu o material do qual sofreu influências.    
Nesse âmbito, a intertextualidade gera uma nova forma de leitura que se distância e muito da linearidade tradicional da escrita literária, onde qualquer referência textual gerará dois caminhos distintos a ser percorridos: efetuar-se a leitura observando-a como fragmentos que fazem parte de um conjunto maior chamado texto 1) ou retornar-se ao(s) texto(s) de origem a partir de uma invocação voluntária do passado (2). Faz-se necessário afirmar que, quanto maior for o nível de cultura e conhecimento do leitor, maior e mais satisfatória será a abrangência intertextual.
Estes dois processos podem ser utilizados separadamente, no entanto, se operados de forma simultânea, criarão uma rica bifurcação que certamente ampliará os espaços de compreensão textual, uma vez que as leituras produzidas a partir desse processo ultrapassarão os limites do modo tradicional de leitura.
Por esse prisma, em quaisquer que sejam os textos lidos, o discurso intertextual deverá ser definido como um hiperdiscurso, já que seu conteúdo não será mais composto por palavras, mas, sim, por fragmentos de textos já escritos e organizados anteriormente. Ou seja, o texto influenciador sempre estará presente como detentor de seu próprio sentido, sem que haja a menor necessidade de enunciá-lo. Fator que conferirá ao intertexto – ou texto influenciado – uma grande e rica carga de plasticidade e informações.
Diante disso, como não reconhecer os benefícios trazidos pela Teoria da Intertextualidade para os estudos ligados à literatura comparada? Não se pode deixar de afirmar, no entanto, que a Teoria da Intertextualidade não se limita apenas a um estudo comparativo do que está contido e pode ser encontrado em uma determinada obra. Ela leva também em consideração o conteúdo social da escritura literária, cuja individualidade se realiza, até certo ponto, no cruzamento particular de escrituras prévias produzidas por várias sociedades e camadas sociais em períodos históricos distintos. A comprovação dessas afirmativas não é nossa, mas de Roland Barthes:

Todo texto é um intertexto; outros textos estão presentes nele, em níveis variáveis, sob formas mais ou menos reconhecíveis; os textos da cultura anterior e os da cultura circundante, todo texto é um tecido novo de citações acabadas. Passam no texto, redistribuídos nele, pedaços de códigos, fórmulas, modelos rítmicos, fragmentos de linguagens sociais etc., pois, sempre há linguagens antes do texto e ao redor dele. A intertextualidade, condição de qualquer texto, qualquer que ele seja, não se reduz evidentemente a um problema de fontes ou de influências; o intertexto é um campo geral de fórmulas anônimas, cuja origem é raramente localizável, de citações inconscientes ou automáticas feitas sem aspas.

O reconhecimento contributivo da Teoria da Intertextualidade para os estudos de literatura comparada são indiscutíveis, até porque, em determinado âmbito, ela coincide e até se confunde com os limites da influência.
Ricas e esclarecedoras leituras de textos literárias podem ser executadas sob a ótica das intertextualidades explícitas. Por outro lado, a intertextualidade implícita é um pouco mais complicada, uma vez que identificasse, e muito, com a conceituação de influência.
Se, por um ângulo, é difícil delimitarmos o que surge através de uma corrente literária situada em uma determinada época, corrente esta que é diretamente influenciada pela situação sócio-político-econômica de um certo período histórico – leia-se intertextualidade explícita – por outro ângulo, é mais difícil ainda localizarmos a intertextualidade implícita, para que a partir dela seja avaliado o processo de absorção e transformação operado pelo texto receptor. Enfim, intertextualidade e influência constituem conceitos que funcionam em conjunto no que diz respeito as manifestações intertextuais explícitas. Já essa união, no que se relaciona às intertextualidades implícitas só funcionará de maneira produtiva e satisfatória se o nível de erudição do leitor – leia-se estudioso crítico – for bastante rico. Ou seja, para que as intertextualidades implícitas possam ser detectadas, faz-se mister um profundo conhecimento do estudioso sobre o autor e obra (s) investigadas.
Detenhamo-nos, por enquanto, em algumas outras apreciações sobre os estudos de Bakhtin e Júlia Kristeva, relacionando-os a outras segmentações da escrita, não diretamente ligadas à Literatura.
Comprovando que um novo texto que surge é o ponto de intersecção do cruzamento das "vozes múltiplas" que originam o conceito dialógico de Bakhtin, observemos o poema de João Cabral de Melo Neto que se segue:

TECENDO A MANHÃ

Um galo sozinho não tece uma manhã
Ele precisará sempre de outros galos
De um que apanhe esse grito que ele
E o lance a outro; de um outro galo
Que apanhe o grito que um galo antes
E o lance a outro; e de outros galos
Que com muitos outros galos se cruzem
Os fios de sol de seus gritos de galo,
Para que a manhã, desde uma teia tênue,
Se vá tecendo, entre todos os galos.

Este poema de João Cabral de melo Neto, explicita o a criação de um texto tal como Bakhtin o idealizou: uma escrita tecida polifonicamente por fios dialógicos de várias vozes polemizando e interagindo entre si, respondendo e completando-se umas às outras. Confirmando, pois, a afirmativa bakhtiniana de que a Intertextualidade não é uma dimensão derivada, mas, sim, a dimensão primeira de que o texto deriva. Ou seja, devemos sempre atentar para o fato de que a Intertextualidade, na obra de Bakhtin, referendar-se-á sempre a Intertextualidade "interna" das vozes inseridas no texto. Vozes essas que dialogam e polemizam no interior desse mesmo texto, nele reproduzindo o intercâmbio e apropriação com e de outros textos.
Essas afirmações comprovam que tudo o que é produzido pela humanidade, mesmo que aparentemente não possua nenhuma ligação, encontra-se em uma constante relação de mutualidade. Absolutamente tudo que o intelecto humano constrói, unificá-lo se em uma imensa rede na qual os fios que este intelecto produz são formados pelos bens culturais e sociais. Ao considerar-se toda a produção humana como textos a serem lidos, decifrados e reconstruídos por nós, obteremos, a partir dessa análise, uma sociedade que deverá ser vista como uma gigantesca teia intertextual, em um movimento perene, onde o espaço da cultura deve ser observado como um imenso campo intertextual. É certo que numa mesma sociedade existem vários grupos culturais, o que certamente gera conflitos. No entanto, esses mesmos conflitos, essas mesmas diferenças são também fatores que comprovam, através de suas divergências, a troca de ideias e informações que levam a uma consequente intertextualização dessas mesmas ideias e informações. Simplificando: quem diverge, diverge por que executa traços comparativos fundamentados em informações absorvidas e confrontadas.
Há o costume errôneo de se crer que as grandes transformações culturais se dão apenas quando do surgimento de importantes descobertas, quando na verdade, estas descobertas só ocorrem a partir da apropriação lenta e gradual de conhecimentos acumulados anteriormente. Tomemos por exemplo básico a invenção da bússola no século XVI. Sem o seu surgimento, os sofisticados instrumentos de navegação atuais – inclusive a navegação espacial – certamente não existiriam.
O que dizer então da moda vestuária e afins, com suas constantes idas e voltas ao passado, vislumbrando um futuro que sempre trará o que já foi criado. O novo sempre vem, mas nunca completamente inédito. Salvas sutis mudanças de matérias-primas que surgem paulatinamente, a moda quase nunca se inova, mas, sim, recicla-se.
Estes poucos exemplos já são suficientes para se compreender a  cultura humana como um progresso de permanente intertextualidade, onde cada nova conquista sempre interagirá com as que a precederam.
Esse contínuo processo de intertextualidade ganhou força nas últimas décadas. Na atualidade, as chamadas tecnologias de ponta venceram as barreiras do espaço e distância, permitindo, dentre outras coisas, a recepção simultânea de imagens em várias partes do mundo, transformado nosso planeta na “aldeia global” profetizada por Andy Warhal já nos anos 1960. Um exemplo dessa globalização pode ser percebido nas empresas multinacionais, pertencentes a grupos econômicos que atuam em vários países ditando costumes e hábitos, numa clara manipulação de interesses particulares aos países a que elas pertencem.
Outro exemplo evidente são os meios de comunicação de massa. Na Televisão, por exemplo, esses interesses particulares se potencializam de forma assustadora. Uma grande rede televisiva – no Brasil leia-se Rede Globo – pode alterar de forma profunda os conceitos e tradições de um povo, levando-o a limites inacreditáveis de influência, aceitação do que lhes exposto (por que não dizer imposto?). De consequente negação (por que não dizer renegação?). De seus costumes e hábitos culturais?
A Televisão, como um veículo, não é, de si, empobrecedora, embora seja configuradora de uma linguagem que não se confunde com outras. Assistir a um filme pela televisão, com as interrupções para propaganda, concordemos, não corresponde a assistir ao mesmo filme no cinema. Na Segunda opção, jamais sofreremos o "bombardeio" de comerciais que incentivam o consumo de bebidas e cigarros. (Que saudades cinematográficas da pureza do Canal 100).
No Brasil, por exemplo, a Televisão é monopolizada por grupos poderosos, o que a impede de ser múltipla, diversificada e verdadeiramente aberta à difusão das diferentes vozes sociais. De qualquer forma, mudando-se o veículo, mudam-se as condições de recepção e, consequentemente, a produção de sentido. Eis porque, faz-se mister a necessidade de um honesto compromisso sociocultural por parte daqueles que "fazem" e dirigem a televisão brasileira, uma vez que esse poderoso palimpsesto do terceiro milênio "apaga" e reescreve – cria e recria – a cada imagem sobreposta na tela dos aparelhos receptores (leia-se televisão com "t" minúsculo), opiniões, conceitos e hábitos comunitários.
No entanto, devemos reafirmar que, no Brasil, a Televisão é monopolizada por grupos poderosos, o que a impede de ser múltipla, diversificada e verdadeiramente aberta à difusão de diferentes vozes sociais. Eis porque a necessidade urgente de que sejam revistos conceitos e objetivos para que assim recicle-se esse veículo cultural, suas condições de recepção e a consequentemente produção de sentidos e opiniões populares geradas por ele.
Não por acaso tanto ouvimos falar em interatividade no Mundo de hoje. Com a popularização dos computadores, quase todas as famílias de classe média e alta passaram a possuir essas máquinas em suas casas. O livro, antes de papel, adaptou-se à tela interagindo, no mesmo espaço ocupado pelo som, pela imagem e pela palavra escrita.
Ao se ler um romance na tela de um computador, rapidamente descobrimos que os limites entre o código visual e o verbal praticamente desapareceram. O texto, no caso do romance, com certeza se alterará através dessa mudança de veiculação, uma vez que o computador abre a possibilidade de uma intervenção concomitante de outras linguagens, interferindo diretamente na significação. Uma tragédia de Shakespeare, na tela do computador, pode ser lida e simultaneamente assistida, através de uma “janela”, recurso da informática que possibilita a divisão da tela do computador em dois ou mais espaços.
Dentro de uma realidade assim disposta, torna-se, pois, imprescindível estudar de maneira profunda a intertextualidade, do fenômeno da influência e de seus efeitos, quer benéficos ou maléficos em todos os campos socioculturais existentes. Em seu sentido latu, a Intertextualidade abrange todos os objetos e processos culturais, relacionados aos textos. No seu sentido mais restrito, a Intertextualidade se deterá apenas no que diz respeito às produções verbais e orais no seu todo.
O texto, como objeto abrangentemente cultural, tem uma existência física que pode ser apontada e delimitada de forma variada: um filme, um romance, um anúncio, uma música, por exemplo. Entretanto, esses objetos não se encontram completamente decifrados, uma vez que para isso ocorrer tornam-se necessários o olhar, o raciocínio e a recriação dos leitores (e ouvintes), onde cada um deles fará uma particularizada leitura do que neles está contido, uma vez que cada texto apresentado se constitui numa proposta de significação que ainda não está inteiramente construída. Essa significação e seu consequente desciframento se dará no jogo de olhares entre o texto e o seu destinatário. Onde este último é um interlocutor ativo no processo de significação, na medida em que participa do jogo intertextual proposto pelo que ora ele lê, numa comprovação clara de que cada leitor terá sempre uma forma diferenciada de captar, decodificar e sintetizar os textos que lhe forem apresentados, dependendo do seu nível de conhecimento e erudição. Ou seja, um mesmo texto pode ter leituras inumeráveis, de acordo com o nível cultural de cada indivíduo que o lê. Essas são comprovações evidentes de que processo cultural jamais cessa.
No entanto, os seres humanos que o vivenciam de modo contínuo, efetuam cortes e recortes nesse conjunto para adaptá-lo aos seus interesses, necessidades e ambientes em que se encontram inseridos. Logo, é correto afirmar que o sentido de qualquer texto será sempre relativo, uma vez que cada indivíduo o interpretará de forma diferente e de acordo com seus conceitos, tradições e conhecimentos científicos e de Mundo. Arriscar falar em autonomia de um texto será, em geral, ilógico, uma vez que esse texto sempre se caracterizará como um “instante” privilegiado por um início e um final cuidadosamente escolhidos por seu autor, onde é correto afirmar que nenhum ser humano conseguirá – sendo ele produtor ou receptor – esgotar a extensão simbólica de uma cultura inteira, comprovando, pois, que os textos são unidades absolutamente necessárias à existência da rede cultural a que nos referimos anteriormente.

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*Túlio Monteiro - escritor, biógrafo, pesquisador, revisor, ensaísta e crítico literário, publica todas as segundas aqui no Evoé! Leia também Literatura com Túlio Monteiro.

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