segunda-feira, 30 de outubro de 2017

DEFININDO O FLUXO DA CONSCIÊNCIA (Parte 1) - Túlio Monteiro*


Deixemos, pois, para os dias de amanhã, o que pode emergir de mais sugestivo num estudo crítico sobre o Sr. Graciliano Ramos: a interpretação de sua figura psicológica através de seus romances. (Álvaro Lins)


Até meados do século 19, imperavam no meio literário os romances descritivos, em que os autores de então preocupavam-se primordialmente com descrições minuciosas e detalhadas dos ambientes e personagens de suas obras, relegando a narrativa a um plano puramente secundário.
É nesse cenário que em 1874 surge o Impressionismo, escola pictórica inaugurada por Claude Monet. Inicialmente adotado apenas pelas artes plásticas, o Impressionismo logo viria a disseminar-se por outros campos culturais, vindo a exercer influências sobre a Literatura, nesta causando profundas mudanças estéticas. O estilo meramente descritivo de até então, deu lugar a uma narrativa mais ágil, mudando radicalmente o eixo de desenvolvimento da maioria das obras que seriam produzidas a partir daquele momento. As extensas e enfadonhas descrições lineares de ambientes e objetos imobilizados cedem espaço ao recurso da narração, possibilitando participações ativas e interpretativas tanto do autor-narrador quanto do leitor, dando mais movimento e dramaticidade ao desenrolar do enredo. Em suma, o que antes era estático e minuciosamente descritivo é substituído por textos mais ágeis e enxutos.
Um dos primeiros romances surgidos no seio desse novo modo de escrita foi A Rebours, de Huysmans, livro no qual o autor consegue introduzir o leitor num enredo em que as personagens se encontram interligadas por uma trama comum, onde as impressões do autor-narrador passam a ser também as do leitor que participa ativamente do desenrolar da narrativa.
Alguns anos mais tarde, mais precisamente em 1887, Édouard Dujardin, em Les Lauries Sont Coupés (Os Loureiros Estão Cortados), introduz a técnica do monólogo interior na narrativa literária, tornando-se precursor do que mais tarde viria a ser chamado de romance de fluxo da consciência, no qual o enunciado mental de uma personagem é apresentado ao leitor sem a interferência de comentários ou notas do autor.
Delineavam-se, nesse momento, os primeiros traços do que viriam a ser os romance psicológicos, com suas técnicas de fluxo da consciência, modo que só viria a se firmar no cenário literário no século 20, poucos anos após a Primeira Grande Guerra Mundial, quando vieram a existir – nos Estados Unidos, Inglaterra e França – seguidores como James Joyce, com Ulisses (1922); Virgínia Woolf, com The Common Reader, Second Series (1932); Scott Fitzgerald, com Tender is the Night (1934); Édouard Dujardin com Le Monologue Interieur ((1931); Willian Faulkner, com As I Lay Dying e Marcel Proust, com Em Busca do Tempo Perdido (nove volumes publicados entre 1913 e 1927).
O estilo pictórico inaugurado por Monet e tão bem absorvido por Dujardin e seus seguidores, implicou em profundas mudanças nos moldes da narrativa e da linguagem tradicionais. As narrativas lineares e sem movimento perderam sua hegemonia, cedendo lugar a uma forma ainda mais fragmentada de escrita: o fluxo da consciência. O autor que lança mão dessas técnicas, utiliza inúmeros recursos de escrita para transmitir ao leitor o modo desordenado que as caracteriza. O abandono da pontuação e a introdução do discurso psíquico-interior, dando ideia de que é o pensamento da personagem que está sendo exposto, são exemplos dessas técnicas.  
De forma mais literal, o fluxo da consciência se aplica melhor aos campos de estudo da Psicologia, uma vez que é utilizado de forma mais clara quando trata dos processos mentais, isso porque, quando direcionada à locução retórica transforma-se em um expediente duplamente metafórico. Ou seja, a palavra fluxo, assim como a palavra consciência são meramente figurativas, o que, consequentemente, dá a ambas pouco estabilidade e precisão. No entanto, se a expressão fluxo da consciência direcionar-se ao estudo de um sistema que define os aspectos psicológicos de uma personagem de ficção, aí sim, poderá obter um maior nível de precisão.
Um romance escrito dentro das características desse formato pode ser facilmente identificado pelo leitor, muito mais pelo seu conteúdo que propriamente pelas técnicas ou temáticas que lhe são peculiares. Isso porque, romances que se valem das técnicas de fluxo da consciência mostram, em primeiro plano, a consciência de uma ou mais personagens retratadas, sendo esse o verdadeiro tema sobre o qual se desenrola a trama contida no romance.
Do mesmo modo, faz-se necessário saber que consciência se refere a área de atenção mental, e que se partindo da pré-consciência chega-se ás áreas da apreensão comunicável e racional, sendo mais especificamente da primeira que se ocupa a chamada ficção psicológica.
No que diz respeito aos romances de fluxo da consciência, torna-se desnecessário catalogar categorias definidas a partir dos inúmeros níveis de consciência. Tais tentativas exigiriam respostas a profundos questionamentos metafísicos, gerariam sérias perguntas sobre a conceituação do termo psicologia e das intenções estéticas dos escritores que se valem do fluxo. Sendo assim, para uma análise satisfatória da ficção de fluxo da consciência, devemos supor que existem vários níveis de consciência que vão desde os mais inferiores (pouco acima do esquecimento), até os mais superiores (diretamente relacionados com a comunicação verbal); estes conceitos – inferiores e superiores – simplesmente apontam para níveis de algo que obedece a uma hierarquia extremamente racional. No entanto, há dois níveis de consciência que podem ser diferenciados facilmente: o nível da pré-fala e o nível da fala. O nível da pré-fala, objeto maior da literatura de fluxo da consciência, não implica necessariamente numa base para comunicação, como é o caso do nível da fala, sendo esta a sua principal característica. Sendo assim, em Vidas Secas e São Bernardo, obras do brasileiro Graciliano Ramos, direcionaremos nossas análises para a área de processos mentais, dando atenção especial aos níveis da pré-fala.
Para que um romance venha a ser definido como narrativa de fluxo da consciência, alguns aspectos devem ser levados em conta. Não se pode, dessa forma, confundir inteligência com consciência ou mesmo memória. Exemplifiquemos. Quando Pedro Nava escreveu Baú de Ossos, ocupou-se apenas com os aspectos rememorativos da consciência, detendo-se somente na recapitulação de seu passado, para apresentá-lo aos leitores. Portanto, esse romance de Nava em momento algum possui características do fluxo da consciência, sendo sua tônica a memorialista. Já alguns romances de Graciliano Ramos, como Angústia, Vidas Secas e São Bernardo, também escritos à luz dos processos psicológicos, direcionam a narrativa ao ponto de vista mental das personagens, sem, no entanto, expor explicitamente esses “discursos” mentais ao leitor, objetivos maiores do fluxo da consciência.
Um romance escrito sob a ótica dessa temática descritiva centra sua linha ficcional na exploração dos diversos níveis da consciência que antecedem a fala, tendo por objetivo maior revelar o estado psicológico de cada uma das personagens nele inseridas. O grande número de possibilidades criadas a partir dessa afirmativa, dificulta uma definição completa das técnicas que envolvem esse processo de escrita. Ao analisar-se romances que se enquadram nesta categoria, torna-se logo aparente que as técnicas utilizadas para apresentação das personagens e do enredo são imensamente diferentes de um romance para outro, o que caracteriza uma vasta gama de técnicas. Essa aparente falta de ordem levou Robert Humphrey a escrever o livro O Fluxo da Consciência, em 1954. Nele, Humphrey buscou definir de maneira menos complexa as técnicas utilizadas para a elaboração de um romance nessa perspectiva.
A Literatura de fluxo da consciência é escrita sob a égide da Psicologia, sendo a consciência humana introduzida na ficção como tentativa moderna de analisar a natureza do homem, uma vez que a consciência é a instância onde se pode tomar conhecimento das experiências e sensações humanas. E é exatamente esse conhecimento, essa essência que buscam os romancistas ligados ao estilo de escrita descortinado por Humprey. Inúmeros aspectos tornam-se coletivos na escrita de fluxo da consciência: Lembranças, opiniões, sensações, fantasias, introspecção e imaginação unem-se num só bloco, no qual o escritor moderno – misto de psicólogo e romancista – discorre sob os muitos prismas da consciência.
Tais afirmativas implicam na assertiva de que a área com a qual se ocupa o fluxo da consciência diz respeito à experiência espiritual e mental; nesta o quê relacionado ao campo da experiência espiritual inclui em seu cerne os processos de associação, os sentimentos e as simbolizações; já o como, relacionado ao campo da experiência mental, preocupa-se com a imaginação, as lembranças e intuições. Tamanha proximidade e complexidade muitas vezes dificulta a diferenciação dessas duas diretrizes. No entanto, não compete ao romancista que escreve à luz do fluxo da consciência distinguir tais experiências, cabendo essa parte aos críticos e estudiosos do assunto.

Aspectos e características importantes da ficção de fluxo da consciência

Detenhamo-nos, agora, na análise de alguns aspectos e características importantes da ficção de fluxo da consciência. Comecemos pela problemática estabelecida para a descrição da personagem principal de um romance. O romancista que se aventura por esse paradigma de escrita tem em suas mãos a possibilidade de criar personagens extremamente realistas e verdadeiras. Delineando os aspectos psicológicos das personagens, o escritor tem a vantagem de partir do interior destas, construindo de maneira bem mais detalhada e realista a trama que as envolve. Esse é um aspecto crucial ao entendimento de uma diretriz importante para os seguidores desse tipo de escrita: o compromisso com a realidade. Nas páginas de um livro dedicado aos conceitos do fluxo da consciência, é possível encontrar características similares às dos escritores realistas e naturalistas do século 19.
A única diferença entre esses dois modos de escrita fica por conta do enquadramento psicológico que os escritores modernos utilizam, ou seja, tanto os escritores realistas e naturalistas quanto os do fluxo da consciência buscam descrever a vida da maneira mais verdadeira e correta possível. No entanto, os últimos preocupam-se com um aspecto a mais: a descrição realista da vida psíquica de suas personagens.
É necessária muita habilidade e técnica apurada para a construção de uma ficção de fluxo da consciência, o qual exige recursos técnicos extremamente diferenciadas de outras maneiras de escrita. Por conta disso, a análise de romances produzidos à luz desse tipo de narrativa preconiza um exame do método de criação, bem como dos seus dispositivos e de sua forma. O fluxo da consciência baseia-se, essencialmente, na compreensão, por parte do leitor, dos dramas e processos psíquicos que ocorrem na mente humana.
Graciliano Ramos não deixaria de perceber estas novidades literárias que lhe chegavam do eixo anglo-franco-americano, conduzindo sua produção literária pelos mesmos caminhos trilhados por Dostoiévski e Machado de Assis.  Alguns de seus romances, a exemplo de Vias Secas, São Bernardo e Angústia, buscam explicar, através da consciência de suas personagens, o homem interior, o homem psicológico e suas introspecções físico-sociais.
Romancista interiorista e analítico, Graciliano Ramos ocupa-se do cotidiano e das alucinações psicológicas de suas personagens, buscando sempre revelar o caráter humano destas através de uma linguagem simples e enxuta, como no caso de São Bernardo, em que a mente do latifundiário Paulo Honório é constantemente agitada por sensações incomuns e sentimentos complexos, ou a dos incontáveis monólogos interiores do sertanejo Fabiano, de Vidas Secas, em permanente busca por algo que o diferencie dos animais e homens que o cercam.
São Bernardo trata da história de Paulo Honório, homem marcado por sentimentos extremamente negativos como o egoísmo, a maldade e o ciúme. Somados ao temperamento solitário e áspero da personagem em questão, esses sentimentos tornam-se o arcabouço de que Graciliano necessita para expor as fraquezas e qualidades que a caracterizam. Sem encontrar um sentido espiritual para sua vida, Paulo Honório carrega, de par com a ausência de fé, um gigantesco poder de negação que encontra ecos de correspondência num permanente desejo de aniquilamento e destruição dos que o cercam, usando para isso a força de suas posses materiais. A reificação de Paulo Honório em São Bernardo vai além dos limites tradicionais abrangidos por esse conceito idealizado por George Lukács. Ela não se dá apenas sob os aspectos comuns ao homem coisificado que, invertendo os valores culturais e sociais, enxerga e é enxergado pelo Mundo que o cerca, como bem mercantil, um número a mais na multidão. Graciliano Ramos vai além disso, penetrando no inconsciente que condiciona o modo de Paulo Honório ver as coisas, chegando assim à vida privada da personagem. A ânsia de obter mais bens e propriedades, o ciúme doentio que nutre por sua esposa Madalena, e as longas introspecções de um Paulo Honório agreste e capitalista são as tintas principais de São Bernardo, romance que pode e deve ser analisado sob o prisma conceitual do fluxo da consciência.   
Como bem convém aos romances de cunho psicológico, diga-se fluxo da consciência, os ambientes que envolvem Paulo Honório em São Bernardo, e Fabiano em Vidas Secas, transmitem ao leitor a sensação de solidão e interiorização das personagens, parecendo que elas habitam não só o deserto geográfico provocado pela seca (no caso de Fabiano que se encontra em plena caatinga), mas também um metafórico deserto interior, no qual nenhuma ajuda, nenhuma salvação jamais chegará do exterior. Entregues aos seus próprios destinos, as personagens não podem sequer contar com a piedade de Graciliano, escritor econômico não só de palavras, mas também de concessões e sentimentalismos ou literários. Nesses dois romances, como em quase todos os outros que escreveu, Graciliano Ramos parece inserir nos enredos alguns traços de sua própria vida. Desfilam, por entre as páginas fabuladas, as tristezas, a solidão e as infelicidades do escritor, sombras de anseios e sonhos sufocados pela realidade da vida. Eis por que Graciliano não demonstra piedade por suas personagens. Uma vez projetada nas criações que maneja, a dignidade literária do autor alagoano jamais permitiria que ele sentisse piedade ou fizesse concessões a si mesmo.
Vidas Secas é um romance inovador, no que diz respeito ao estilo de Graciliano Ramos, isso por ser aquela a primeira narrativa em que o escritor opta por assumir o amplo domínio de suas personagens. No entanto, Vidas Secas não pode ser definido como romance escrito de acordo com os conceitos tradicionais da narração por autor onisciente, uma vez que esta técnica se ocupa apenas em narrar e descrever as cenas e ambientes que compõem o romance. Graciliano vai mais além, detendo-se apenas na vida psíquica de suas criações literárias. Quase sempre que assume o comando da trama, o autor dá à sua escrita as conotações mentais de cada uma das personagens, sejam elas Fabiano, Sinha Vitória ou mesmo a antropomorfizada cachorra Baleia. Esta é a natureza da narração por autor onisciente, conceituada anos mais tarde por Robert Humphrey em seu livro O Fluxo da Consciência.
Em 1947, o crítico literário Álvaro Lins questionou a falta de unidade formal em Vidas Secas. Para ele, as distribuições dos monólogos interiores ao longo do romance não se enquadravam nos padrões oficiais, o que, àquela época, traduzia-se em uma certa falta de domínio literário. Infelizmente, a teorização do fluxo da consciência, segundo Robert Humphrey, só viria a surgir em 1954, chegando ao Brasil somente em 1976. Esse traço comparativo só comprova a genialidade de Graciliano, um escritor quase sempre à frente da conceituação literária brasileira de sua época, uma vez que em Angústia já pode ser detectada essa aparente desordem de enredo à qual se refere Álvaro Lins.
Os monólogos interiores contidos em Vidas Secas detêm-se em explicitar ao leitor apenas o exercício mental de cada personagem, sua pré-fala, seu pensamento ainda não totalmente encadeado. Somado a tanto, o romancista fez questão de atribuir a Fabiano e sua família, e à cachorra Baleia, apenas o que realmente estes possuem em seu cotidiano. Com o emprego desse artifício, o autor praticamente abdica da onisciência, assume as marcas introspectivas de cada personagem e enriquece sobremaneira a narrativa escrita, tratamentos estes característicos de um romance de fluxo da consciência, segundo os modelos definidos por Robert Humphrey em seu Stream of Consciousness in the Modern Novel (O Fluxo da Consciência... (continua no dia 6 de novembro de 2017)
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Túlio Monteiro - escritor, biógrafo, pesquisador, revisor, ensaísta e crítico literário, publica todas as segundas aqui no Evoé! Leia também Literatura com Túlio Monteiro.

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