segunda-feira, 4 de setembro de 2017

PLURILITERARIEDADE EM GUSTAVO BARROSO - Túlio Monteiro

A poesia da história repousa no fato quase milagroso de que, por esta mesma terra, por este mesmo chão familiar, já caminharam outros homens e mulheres, tão reais quanto nós, com pensamentos próprios, levados pelas próprias paixões, todos mortos agora, gerações e gerações completamente desaparecidas, da mesma forma que nós muito breve desapareceremos como fantasmas ao raiar do dia. George Macaulay Trevelyan



Discorrer sobre a vida e a obra de Gustavo Barroso é tarefa das mais agradáveis. Eclético, Gustavo Dodt Barroso, que nasceu em Fortaleza no dia 29 de dezembro de 1888 e fechou os olhos para esse mundo no Rio de Janeiro em 03 de dezembro de 1959, pesquisou e escreveu sobre inúmeros segmentos das artes e ciências humanas, gerando uma vasta literatura que trouxe à luz 128 livros publicados ao longo de seus quase 72 anos de existência sobre as terras deste planeta. Advogado, político, contista, museólogo, folclorista, ensaísta, cronista, arqueólogo, memorialista e romancista, o filho de Antônio Filinto Barroso e de Ana Dodt Barroso, nunca se conformou com a mediocridade dos que buscam dominar apenas um ou dois assuntos, uma ou duas ciências. Até porque, Gustavo Barroso habitou uma época em que ser polígrafo era mais que uma moda, era um dever àqueles que buscavam um lugar ao Sol no sempre complicado e megalomaníaco mundo intelectual. Em seu tempo, era obrigação de qualquer literato de boa cepa praticar com excelência a poesia, a prosa e o jornalismo diários, sem nunca relegar a um segundo plano a boêmia e o frequentar das rodas culturais. E esses costumes, essa ecleticidade, Gustavo Barroso praticou-os de forma brilhante e competente, seguindo à risca os conselhos do grande Alceu Amoroso Lima, que nos idos anos 1920 já afirmava:

“A unidade de uma carreira literária não está no assunto, mas no espírito. Pode-se mesmo dizer que unidade de assuntos, nos temperamentos propriamente literários, é sinal de pobreza. O escritor deve variar para renovar-se.”

Sempre em busca de encontrar a essência de nossa nobreza tupiniquim, que necessariamente tinha que ter suas raízes fincadas nas Europas Medieval e Monárquica – raciocínio lógico do antissemitismo de um Gustavo Barroso idealizador, ao lado de Plínio Salgado, da Aliança Integralista Brasileira –, o cearense que mais livros publicou até hoje fez muita coisa durante sua existência terrena: além de escritor, poeta e ferrenho pesquisador, foi também um boêmio de primeira linha, que adorava frequentar os cafés e bares literários daquele bucólico Rio de Janeiro do início do século XX, quase sempre acompanhado dos poetas Bastos Tigre e Emílio de Menezes. Com fama de bonitão e conquistador, João do Norte, pseudônimo favorito de Gustavo Barroso, só passou a direcionar seu intelecto aos assuntos mais sisudos da vida após a aclamada publicação, em 1912, de Terra de Sol – Natureza e Costumes do Norte, livro que enfoca com primazia as tradições e estruturas sociais do sertão cearense.

Dentre as inúmeras atividades intelectuais exercidas por Gustavo Barroso, a mais importante delas, sem dúvida, foi a criação, em 1922, do Museu Histórico Nacional, iniciativa que visou reunir e preservar um acervo museológico no que diz respeito à história do Brasil. Preocupado com a memória nacional de um País que ainda hoje peca nesse sentido, já em 1911, Gustavo Barroso assim se posicionava nas páginas do Jornal do Comércio:

“Já se faz necessário a criação de um Museu destinado a guardar relíquias do nosso passado, cultuando a lembrança dos nossos grandes feitos e dos nossos grandes homens. ”

Era 2 de agosto de 1922, plena época de ebulição do Movimento Modernista brasileiro, quando o Museu Histórico Nacional foi inaugurado por iniciativa de Epitácio Pessoa, então Presidente da República. A construção do Museu estava diretamente relacionada às comemorações do centenário da Independência brasileira de Portugal, tendo como primeiro evento a "Exposição Internacional do Brasil", manifestação cultural que funcionou como uma grande vitrine do progresso brasileiro, atendendo, assim, aos anseios das autoridades preocupadas em expor ao mundo uma nação centenária, desenvolvida e civilizada conforme os ditames e moldes europeus. Os visitantes que circulavam pelos pavilhões da tecnologia, comércio, indústria, ciências e transportes tinham a oportunidade de acompanhar a evolução do Brasil ao longo de cem anos de autonomia política executada de acordo com os padrões integralistas de então. A Gustavo Barroso coube a direção do Museu Histórico Nacional, atividade que ele exerceu de maneira vibrante e apaixonada entre 1922 e 1959, quando veio a falecer.

Incansável em sua luta pelo conhecimento, Gustavo Barroso brilhou também no campo da historiografia. De sua pena brotaram importantes textos que até hoje são referências obrigatórias aos pesquisadores desse campo. Foram trinta e quatro livros publicados nessa área entre 1918, com Tradições Militares e História do Palácio Itamarati, de 1953, sendo que, em 1962, por iniciativa do Magnífico Reitor da UFC, Antônio Martins Filho, foi publicado postumamente À Margem da História do Ceará.


À MARGEM DA HISTÓRIA DO CEARÁ: UM LIVRO, MUITAS VIAGENS

À Margem da História do Ceará é uma coletânea composta por setenta e seis artigos e crônicas que versam exclusivamente sobre a história do Ceará ocorrida entre 1608 – época em que os primeiros jesuítas e exploradores portugueses chegaram ao estado-berço de José de Alencar – e 1959, ano da morte de Gustavo Barroso.

Os textos contidos em À Margem da História do Ceará impressionam por sua variedade e longevidade. Escritos a mais de meio século, permanecem atualíssimos do ponto de vista histórico, sendo uma indispensável fonte de pesquisa às mais variadas ciências da humanidade, uma vez que abordam assuntos ligados à Literatura, Arquitetura, Religiosidade, Geografia, Sociologia, Climatologia e Forças Armadas, sem esquecer do velho e agradável espírito-brincalhão do povo cearense.

O leitor mais atento pode dividir os setenta e seis estudos contidos em À Margem da História do Ceará em textos que se costuram um ao outro formando núcleos temáticos que, por sua vez, alinhavam-se entre si formando uma cadeia de núcleos harmonicamente concatenados em um denso tecido histórico-literário. Melhor explicando: nenhum texto contido em À Margem da História do Ceará está “solto”, desconectado dos outros. O leitor mais arguto perceberá, através de uma leitura perspicaz, aspectos comuns entre os textos que formam um núcleo específico. É o caso do núcleo da Religiosidade, que trata da construção das igrejas de Almofala, Quixeramobim, do Seminário da Prainha e do Coração de Jesus, bem como dos homens místicos do Ceará dos séculos XIX e XX, a exemplo de Antônio Conselheiro, Padre Ibiapina, Padre Cerbelon Verdeixa, conhecido como Padre Canoa Doida, e, claro, de Padre Cícero Romão Batista.

Outros núcleos temáticos que compõem o corpo textual de À Margem da História do Ceará, são os núcleos Literário, Bélico, Geográfico, Político e Historiográfico, quase todos entremeados por abalizadas informações arquitetônicas, daí ser esse livro uma consulta obrigatória aos profissionais de engenharia e arquitetura interessados nas edificações executadas no Ceará ao longo de quase duzentos anos.

Todos os textos de À Margem da História do Ceará têm a característica comum do encantamento. Impossível iniciar a leitura de um deles sem se ir até o final, isso porque, a escrita de Gustavo Barroso possui um fluxo contínuo de leveza e literalidade absoluta. Em "História da Praça do Ferreira", por exemplo, Gustavo nos conduz com maestria pela história daquela praça que é considerada o coração e o símbolo da cidade de Fortaleza, trazendo-nos imagens quase reais do ano de 1825, que marca a chegada à capital cearense do boticário carioca Antônio Rodrigues Ferreira, que deu nome à praça, até o ano de 1957, quando o texto em questão foi escrito. Encantador também é "A Igreja dos Albanos", artigo que registra a história da construção e reformas da Igreja do Coração de Jesus e do poder do baronato do café no Ceará do século XIX.

São muitos os temas magistralmente abordados por Gustavo Barroso em seu À Margem da História do Ceará. Nele, estão presentes padres, místicos, loucos, "reis", latifundiários, patriarcas, matriarcas, poetas e heróis. Todos convivendo e conversando pacificamente entre si sobre anos e anos da rica e apaixonante história do Ceará. História escrita por negros, índios e europeus nas caatingas, serras e praias das terras de Alencar.

É leitura obrigatória, pois, À Margem da História do Ceará. Um livro destinado aos muitos segmentos do intelecto humano e aos que gostam de remexer nos folhiços do passado. Documento vivo que perpetua às gerações atuais e pósteras os costumes e peculiaridades das gerações que habitaram o solo cearense há muito, muito tempo antes delas.

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Túlio Monteiro - escritor, biógrafo, pesquisador, revisor e crítico literário, publica todas as segundas aqui no Evoé! Leia também Literatura com Túlio Monteiro.

5 comentários:

  1. É a segunda oportunidade que leio a análise de Túlio Monteiro: a primeira sobre Os Sertões de Euclides da Cunha e, agora, sobre esse personagem cearense tão pouco festejado, mas de imensa importância por sua 'pluriliteralidade'. Peço licença para uma dica: seria de extrema importância apontar os ambientes onde a obra "À Margem da História do Ceará" pode ser adquirido.

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    1. Francisco Augusto, muito me enobrece saber que você gostou de mais um artigo meu. É bom saber que ainda existem pessoas interessadas na preservação da memória cearense. Fico-lhe grato, também, por anexar o link que mostra aos leitores onde conseguir À Margem da História do Ceará, livro hoje sem reedição. Grato. Túlio Monteiro.

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  2. https://www.estantevirtual.com.br/b/gustavo-barroso/a-margem-da-historia-do-ceara/500343470

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  3. Tulio Monteiro em sua saga de preservar a história, focando sempre em gênios da literatura e porque não dizer outras ciências. Orgulha-nos, em saber e poder divulgar, como nós cearenses somos inovadores, (afinal o Museu Histórico Nacional foi uma luta vitoriosa de mais um conterrâneo), sempre na vanguarda e sempre atuais. Infelizmente o que observamos hoje é um cenário de alta tecnologia, mas pouca observação para o que realmente importa. Pois o que é o futuro, sem se conhecer o passado, para que o presente não se perca em erros?

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  4. Mais uma vez Clauton Rocha nos brinda com suas sapiência. O homem é detentor de muitas lembranças, caro leitor. Só tem uma certa timidez para colocar isso no papel. Mas o estamos convencendo. Aguardem mais textos deles. Túlio Monteiro.

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