segunda-feira, 7 de agosto de 2017

UM COFRE, UMA CÁPSULA DE 100 ANOS - Túlio Monteiro

Corria o ano de 1999, quando recebi o convite da Fundação Demócrito Rocha - Jornal O Povo para escrever um livro. Ele viria a fazer parte da Coleção Terra Bárbara, que tem por proposta maior bibliografar grandes vultos da cultura cearense. Imediatamente me comprometi a escrever sobre o perfil de Lopes Filho, poeta simbolista e um dos sete membros idealizadores da Padaria Espiritual, associação de jovens intelectos que por aqui quebraria normas, mudaria conceitos e influenciaria inúmeras pessoas Brasil afora. 

Os meses que se seguiram foram árduos. Nas inúmeras e agradabilíssimas peregrinações que fiz a bibliotecas particulares e públicas, fui apresentado a livros raros e acervos iconográficos de belezas indescritíveis. Conheci grandes personalidades do século XIX e, particularmente, a vida de Lopes Filho, conhecido como o padeiro espiritual Anatólio Gerval, autor do Phantos, primeiro livro de cunho simbolista cearense e, talvez, brasileiro. Isso porque Phantos foi lançado por aqui em 24 de julho de 1893, enquanto o Broquéis, de Cruz e Sousa veio à luz no Rio de Janeiro somente aos 28 de agosto daquele mesmo ano. Submeto, pois, ao julgo do leitor decidir quem realmente deva ser considerado o pai do Simbolismo brasileiro.

Foi numa silenciosa tarde de outubro que, envolvido pela magia dos livros da biblioteca da Academia Cearense de Letras, deparei-me com um exemplar da História da Literatura Cearense, lançada em 1958 por Dolor Barreira. Um rico livro que conta de maneira bastante interessante importantes fatos da nossa cultura. No capítulo destinado ao Centro Literário, grêmio contemporâneo da Padaria Espiritual, e do qual Lopes Filho também fez parte, deparei-me com uma nota de rodapé que me deixou extasiado. Nela, Dolor Barreira se refere ao término do século XIX e início do século XX, mais particularmente a uma confraternização ocorrida naquele dia 31 de dezembro de 1900, na casa de Pápi Jr. - então presidente do Centro Literário -, situada no número 22 da rua General Sampaio, à altura da Cadeia Pública de Fortaleza, hoje EMCETUR.

Naquela aprazível Fortaleza de pouco mais de cinquenta mil habitantes, o século XX chegou mansamente, ainda sem anunciar os avanços tecnológicos que trazia em seu bojo, nem as desgraças que a humanidade ignobilmente infligiria a si mesma. 

Grandes homens e mulheres estiveram presentes àquela festa. Dentre muitos podemos citar José Albano, Castro e Silva, Temístocles Machado, Faria Brito, Godofredo Maciel, Jovina Pápi e Rodrigues de Carvalho. 

No entanto, o ápice do evento viria a ocorrer poucos minutos antes da meia-noite, quando se propôs que daquela reunião fosse redigida uma ata na qual constaria os nomes de todos os presentes, bem como opiniões variadas sobre o fim de um e a chegada de outro século. A ideia foi tão bem aceita que, ainda naquela noite mesmo a ata ficou pronta. Deliberou-se, também, que um escrínio de mármore em forma de livro deveria ser confeccionado para que nele fosse encerrada aquela ata, juntamente com outros documentos e periódicos datados de 31 de dezembro de 1900 e 1 de janeiro de 1901. Uma ordem expressa foi ditada: Aquele escrínio só poderia ser aberto no dia 1 de janeiro de 2001, "para que as gerações vindouras possam avaliar com que devotamento o Ceará cultiva os cometimentos da inteligência", como bem declara um trecho da ata. 

Nos primeiros dias do século XX, o escrínio foi afixado em uma das paredes da Biblioteca Pública de Fortaleza, que à época situava-se na Praça Marquês de Herval, hoje Praça José de Alencar, exatamente onde fica o Teatro José de Alencar. Entretanto, ao longo desses quase cento e vinte anos a Biblioteca mudou de lugar por mais duas vezes, estando atualmente localizada na Avenida Presidente Castelo Branco, 255, ao lado do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura.

Garimpei por todo o ano de 2000 na esperança de encontrar tão valioso tesouro de nossa cultura. Visitei historiadores, estudei plantas arquitetônicas, pesquisei livros de história e nada, nada consegui encontrar. Simplesmente, caro leitor, aquele cofre sumiu. Talvez tenha sido destruído pelas mãos embrutecidas dos que derrubaram o prédio da primeira biblioteca ou pelo descaso de alguém que não sabia o valor da história de um povo. 

Hoje, no quase apagar desse vigésimo século e próximo do chegar de um novo milênio, já quase perdi as esperanças de encontrá-lo. A mim, creio que só resta divulgar o desejo daqueles homens e mulheres que, um dia, se importaram em documentar aos que viriam após eles as coisas que viveram quando por aqui passaram. Lamentando, porém, que se tenha perdido no tempo aquela cápsula repleta de tantos sentimentos.

Aos que até aqui se detiveram a ler o que escrevi, brindo-os com a íntegra daquela ata redigida há mais de quase cem anos. Por questão de economia, não relacionei as assinaturas que se seguem ao final da mesma. Reflitamos, pois, sobre o passado, o presente e sobre o futuro. 

Acta da sessão extraordinária realizada pelo Centro Literário, pelo término do XIX século e entrada do novo século.

Aos trinta e um dias do mês de Dezembro de mil novecentos, era cristã, pelas onze e meia da noite, o Centro Literário, desta cidade de Fortaleza, Capital do Estado do Ceará, reunido em sessão solene, em casa de seu Presidente, António Pápi Junior, na rua de General Sampaio n. 22, com a presença dos sócios efectivos abaixo assinados, e dos cavalheiros representantes de diversas associações também abaixo assinados, com a assistência das exmas. senhoras e visitantes; o sr. Presidente declarou aberta a sessão, e, numa breve mas significativa alocução, fez sentir que o seu fim era o Centro Literário celebrar condignamente a passagem do XIX século e o despontar do novo século, factos altamente expressivos para toda a humanidade, e, muito principalmente para aquelas pessoas que, como os moços do Centro Literário, vivem das ideias generosas que têm por expansão as manifestações da inteligência. Em seguida, concedeu a palavra ao orador, o sr. Raimundo de Farias Brito, que, deixando o salão onde se realizava a sessão, assomou à tribuna levantada na praça pública, onde, ante um auditório numeroso, fez um discurso eloquente, cheio de vida e de intensa vibração no historiar os estádios mais notáveis do século expirante. Perorou com o mesmo ardor e brilhantismo sobre o século XX; e, por uma coincidência feliz, às últimas palavras do notável orador cearense, soavam no relógio da Intendência Municipal e na Sé as doze badaladas da meia noite, hora extrema do século chamado da Luz. Uma salva de palmas prorrompeu da multidão, num concerto de profundo regozijo, e a música dos Aprendizes Marinheiros, oferecida gentilmente pelo ilustre Capitão de Marinha Ludgero Bento da Cunha Mota, comandante da Escola, entoou o hino brasileiro; girândolas e morteiros espoucaram no ar; queimando-se por fim uma salva de vinte e um tiros. Releva consignar aqui ecómios ao brilhantismo da decoração do edifício, seus departamentos, primando a bela alegoria feita aos dois maiores vultos da literatura pátria no século XIX, José de Alencar, o imortal cantor de Iracema, e Gonçalves Dias, o maior poeta da América do Sul, e galhardia de rua. Terminados os discursos, os sócios e demais circunstantes tomaram assento no lugar onde se realizava a sessão, usando da palavra o sr. Presidente para congratular-se com os circunstantes pela forma altamente significativa por que o Ceará intelectual sagrava este facto duplamente memorável que a todos congregava na ocasião. Foi deliberado por todos os presentes que, do ocorrido, se lavrasse a presente acta, que será encerrada em um escrínio de mármore em forma de livro, no qual se incluirão igualmente todos os jornais do dia 1 de Janeiro de 1901. Outrossim, ficou resolvido que se guardasse na Biblioteca Pública, colocado em uma das paredes do edifício, o mencionado escrínio, com a declaração de que só poderá ser aberto no dia 1 de janeiro de 2001, para que as gerações vindouras possam avaliar com que devotamento o Ceará cultiva os cometimentos da inteligência. Que este exemplo fique como um incentivo perene. Encarregou o sr. Presidente ao sócio Rodrigues de Carvalho para redigir a presente acta, que foi lavrada pelo sócio José Luís de Castro. Ceará, Fortaleza, 31 de Dezembro de 1900 - 1 de Janeiro de 1901. Eu, José de Abreu Albano, Secretário do Centro Literário, a subscrevo (assinado) José de Abreu Albano.
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Túlio Monteiro - escritor, revisor e crítico literário, publica todas as segundas aqui no Evoé! Leia também Literatura com Túlio Monteiro. (Este artigo Um cofre uma cápsula - ora revisto e alterado - foi originalmente publicado na revista Singular em novembro de 2000.)

4 comentários:

  1. Sabido é do pioneirismo de nós cearenses... basta elencar algumas proezas de nosso povo... fomos os primeiros a libertar os escravos ( e não me venham com esse papo ridículo que não tínhamos atividade econômica para justificar a escravidão) Tivemos a primeira mulher na Academia Brasileira de Letras....nossa sempre querida e eterna RACHEL DE QUEIROZ... tivemos muitos e brilhantes intelectuais.. que sempre viveram na vanguarda e vislumbraram com total elegância os tempos advir... mas uma coisa é verdadeira.. temos o nosso caçador de tesouros e não menos brilhante Tulio Monteiro meu primo, que na sua busca incessante não descobriu a relíquia que foi aquela pedra de mármore em forma de livro (ou seria o contrário) mas nos brindou com a ata em quase sua totalidade, mas o que é uma ata sem a assinatura dos signatários... bem me comprometo a procurar contigo esse tesouro histórico...

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    1. Tenho o livro com as assinaturas . Mas eram tantos na comemoração da passagem do século na casa de Papi Jr, ali, bem pertinho da antiga cadeia pública, hoje EMCETUR, que se fosse colocar o nome de cada um simplesmente não caberia no espaço concedido pelo editor. Túlio.

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  2. O Simbolismo é nosso! Cruz, poeta do meu agrado, chegou depois.
    Parabéns, amigo Túlio Monteiro! Gosto de ler seus escritos preciosos.
    Grande abraço.

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    1. Suas palavras são sempre confortantes, Lucineide. Obrigado mais uma vez por seu tempo consumido no que teimo em chamar de minha literatura. Túlio.

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