quarta-feira, 9 de maio de 2007

Fogão a lenha

“Que tal almoçar aqui em casa?”. O convite partira de Almir Mota, um contador de histórias e tanto. (Era sábado, dia 30 de setembro, de 2006, véspera das eleições para presidente, senadores, deputados e governadores).

A casa de Almir Mota tem um fogão a lenha. Fica num bairro bem bucólico de Fortaleza. A natureza ainda exubera por lá. É um bairro simples, suburbano. Com toda a esquisitice de ruas improvisadas.


Havia comprado-a recentemente. Nem bem recebeu a casa, foi logo fazendo adaptações. Alargou a cozinha, construiu um alpendre no quintal e nele fez surgir um fogão a lenha.


O alpendre é ensombrado, ladeado por goiabeira, jambeiro, aceroleira, abacateiro e cajueiro. Cada um exala seu aroma, inclusive, o fogão, com seu cheiro de lenha apagada.


O perfume do fogão me faz lembrar o cheiro do cacique Daniel dos Pitaguaris, a quem eu conheci durante a 7ª Bienal Internacional do Livro do Ceará, da qual fui coordenador do espaço infantil. Quem o me apresentou foi o poeta e arte-educador Ray Lima. Ele fora à bienal socializar o excelente trabalho “Os Meninos Autores”, desenvolvido pela Escola Zumbi em Maracanaú, da qual é idealizador.


Ray me informou que o cacique ao saber do evento fez questão de vir dançar o torém, dança étnica dos pitaguaris, no palco do espaço infantil, a que denominei de Minarete Encantado. Tudo acertado. Eles vieram e dançaram. Foi um sucesso.


O fotógrafo Chico Gadelha, que cobria a bienal, me inquiriu pelo torém. Disse-lhe que já ocorrera. Ih... dissemos os dois. Ficaríamos sem o registro da participação dos pitaguaris? Jamais. Pedi para o cacique voltar ao palco. Ele aceitou com satisfação.


Todavia quase causo um conflito étnico (para ser bem exagerado), pois ao microfone, apressado, dissera para a renovada platéia que os pitaguaris compunham um dos eixos de ação da Escola Zumbi e apresentariam ali uma manifestação cultural de seu povo: o torém.



Cacique Daniel subiu ao palco acompanhado dos curumins. Cantou uma introdução e não dançou; mas ao microfone falou de forma serena que não compunham eixo nenhum, que os pitaguaris, assim como todas as nações nativas desse continente, eram o berço da cultura brasileira e das Américas. Que não havia ninguém ali presente que não tivesse sangue de índio, que ele respeitava todos os povos e suas manifestações, mas queria deixar claro que os pitaguaris eram uma nação independente, com cultura e identidade próprias, que mantinham escolas com a pedagogia de sua gente. Que todos presentes e não presentes é que pertenciam à cultura deles e não eles é que pertenciam a outra cultura. Balançou o maracá, entoou um canto de despedida, agradeceu e se foi do palco; mas fez questão de umas fotos comigo.

Chico Gadelha, fotógrafo de mão-cheia, registrou esses momentos, inclusive o meu aperto de mão com cacique. Fiquei tão próximo dele que lhe senti o cheiro. Matei minha curiosidade infantil de qual seria cheiro de índio. Agora sei: cheiro bom de fogão a lenha apagado. Como o cheiro do povo do sertão do meu Ceará.


Esse cheiro, inclusive, deve ter ficado na memória afetiva dos contadores de histórias que vieram participar do I Encontro Internacional de Contadores de Histórias no Ceará. Um evento que fez parte da programação oficial da 7ª Bienal.


O encerramento do encontro, dia 26 de agosto, foi com a Maratona de Contação de Histórias pela Paz. Nem bem acabou o evento, todos rumamos para a casa de Mota, aliás, para o fogão a lenha de sua casa. Em torno do qual haveria uma roda de histórias. Foi um encontro lítero-musical, gastronômico e multicultural.


Marcella Romero, do México, aprendeu, com a minha mulher, Lidiane Moura, a fazer tapiocas. Disse que em casa iria criar a "taccooca", uma mistura de tacco mexicano com a tapioca cearense. Para Socorocaba, Marcos Boi, blues man e partner de contação de Zé Bocca, levou as lições práticas que lhe dei de como fazer caldo de sururu. Fomos responsáveis pelo pitéu que saiu na madrugada e reanimou a todos.


German Jaramillo Duque já me escreveu da Colômbia registrando a saudade da “roda de histórias na casa de Almir”; do Peru, Cucha Aguila exige mais encontros junto ao fogão à lenha; do Brasil afora Luciana Tenório, Fabiano Moraes, Rogério Andrade Barbosa, Giba Pedroza e Renata Mattar, Zé Bocca e Marcos Boi, além dos cearenses Júlia Barros, Mara Monteiro, Josy Correia e Júlia Fiúza, Raimundo Moreira, todos relembram sempre o encontro como um dia mágico.


Houve contação de histórias, declamações e muitas canções, acompanhadas pela rabeca de Marcos, o acordeon de Renata, os tambores de Júlia Fiúza... Tudo foi-se acomodando à magia do fogão a lenha.


Andréa Havt, que organizara a Festa do Livro e da Leitura de Aracati (evento que se integrou, em 2006, à 7ª Bienal) apareceu também, trazendo a voz e o violão gaúcho de Vítor Ramil, junto a eles veio também o escritor Eduardo Loureiro, e tudo se conformou da melhor forma possível madrugada adentro.


Tudo ali no entorno do fogão à lenha. Que tinha como principal atração, na trempe, um caldeirão de barro com feijão-verde com muito queijo de coalho. Esse seria também o cardápio para o tal almoço de véspera da eleição; mas acabou virando baião, porque ao ouvir o convite nem pensei duas vezes, topei e disse fazer questão de preparar uns peixes. E no Ceará, peixe combina com baião.


No caminho escolhi cinco peixes bem-fornidos. E na casa de Almir, junto ao fogão a lenha, fizemos e servimos ao molho de gengibre e alcaparras os tucunarés com baião-de-dois.


O resultado da eleição do dia seguinte só não foi tão bom quanto o almoço, porque teríamos segundo turno para presidente. A próxima votação seria num domingo, dia 29 de outubro, dois dias depois do meu e do aniversário do candidato Lula.


O anfitrião disse fazer questão de comemorar meus quarenta e cinco anos junto ao fogão à lenha, no domingo. No fim das contas, o que eu pensava ter sido ruim seria melhor, pois teríamos comemoração dupla: festejaríamos também a reeleição de Lula, com uma mariscada acompanhada de uma especial salada de chuchu.


Mas infelizmente, a violência absurda, banalizada, assassinou Andréa Havt Bindá, uma semana antes, num assalto estúpido, em um cruzamento de duas avenidas de Fortaleza. O silêncio de reverência tomou conta de todos que a amam. Silentes ficamos, tal como lhe era habitual em sua enorme generosidade de cumprir a parte fundamental do diálogo: ouvir. Ouvir para entender e respeitar: atitude essencial à promoção da paz.



Kelsen Bravos

11 comentários:

  1. Puxa, Kelsen, me emocionei! A opção da memória olfativa caiu como uma luva pra me deslocar pra aquele dia. Foi a última vez q vi andréa. Ao menos além da memória e do coração. Amava aquela menina do meu jeito, sem muita propaganda, sem grandes explosões e demonstrações, como também amo vcs desse círculo de amizade. Me comunico pouco, é um defeito, eu sei, mas egoísticamente me regozijo diariamente com as grandes amizades que aí ganhei.
    espero estar novamente ao lado de um fogão de lenha como aquela ocasião todos os dias da minha vida, e espero ansiosamente o dia em que possa lhes dar um abraço apertado novamente.

    Marcos Boi

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  2. Meu caro amigo Marcos,

    Estamos unidos pela mesma causa: a arte! A nossa menina-sorriso está encantada. Depois de trinta dias da ida abrupta de Andréa, o Nixon, você deve conhecê-lo, organizou uma manifestação pela paz no local do tiro. Foi bonito. Distribuiu-se flores e bem no lugar onde o carro dela parou, num jardim do parque do Cocó (a 150 metros de onde foi abordada), plantamos uma árvore. Um Ipê-roxo, que era a sua cor preferida (idéia de Geórgia Zaranza). O local é cuidado por todos. Tem uma iluminação especial, amigo. O Ipê-Déa está cada dia mais lindo!

    Kelsen Bravos

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  3. Kelsen,

    Adorei a sua crônica.
    E eu na minha ingenuidade mineira pensava que apenas nós gostavamos de reunir os amigos em volta de um fogão a lenha, para ali pôr os assuntos em dia regado a uma boa e saborosa comida.
    Mas me deu inveja danada de não estar ali naquela roda de amigos, animação deve ter sido ótima, pois a comida estava saborosissima, (não comi, mas me deu uma água na boca, peixe com baião, Ô TREM BÃO SÔ, rsrsrs)
    Agora aprendi o caminho, estarei sempre aqui lendo e viajando neste mundo encantado de suas crônicas, pois você consegue na simplicidade das palavras transmitir toda a sua emoção, alegria, e até o olfato - consegui sentir o cheiro que o índio exalou quando apertou a sua mão, só não consegui senti o gosto do tucunaré com o baião-de-dois.
    rsrsrsrs
    Um grande abraço.
    Lu - Araxá-MG

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  4. Luciana,

    Seu comentário me deixa feliz. Um fogão a lenha daqui, sobretudo do sertão, é bem diferente de um mineiro, sobretudo, de Araxá. Mas uma coisa é igual a festa, a comunhão, o comemorar, o dividir o vinho e o pão. Quem se reúne assim é de fato companheiro.

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  5. adorei o texto...
    lembra muita coisa pra mim...
    xeroooooooooooo!!!
    ^^*//

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  6. Essa sua crônica é uma das coisas mais bem escritas que já li. Parabéns! Já virei sua fã.

    Admiradora secreta.

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  7. Meu DFeus, Kelsen. A Andrea e eu fazíamos contato sobre levar atividades para Beberibe. Eu não sabia que tinha sido ela. Lamento muito. Adorei o texto que me remeteu à infância nas bandas de Cascabel, Beberibe, Quixada, onde todos os fogões eram a lenha, naquelas cozinhas enormes, com cheiros inesquecíveis. Bom, mas fiquei com inveja de não ter contribuído com a culinária e estranhei: não teve nenhuma libaçãozinha. O amigo nem tocou no assunto!
    Adorei mesmo tudo.
    Beijo
    Leda

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  8. (Foi a Déa sim, Ledinha...). Lembro que coloquei vocês em contato, para Beberibe sediar alguns eventos culturais, inclusive, os da Bienal...

    ...
    Quanto à libação...
    Teve sim, Ledinha, teve sim. Não falei da bebida em si, porque ela foi um mero acessoriozinho... Mas havia vinhos, cervejas, destilados e a indefectível cachacinha, de primeira qualidade.

    O que me chamou a atenção foi Giba Pedroza optar pela cerveja em lata, pois ficava mais fácil de pôr em banho-maria. Sim, ele aquece a cerveja, para quebrar o gelo. Diz que é para preservar a garganta (ele vive disto: contando histórias). Nosso Senhor tem cada morador...

    Esqueci também de rememorar no texto o arrasta-pé, a sessão de forró. Jaramillo Duque, da Colômbia, já um senhor entre nós, aprendeu e se esbaldou. Já estava dando até aulas.

    Kelsen Bravos

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  9. Bons tempos, amigos reunidos e unidos.

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  10. Bela história, Kelsen Bravos! Adoro viajar nos cenários descritos por você... Porque tem os seus olhos, o belo transparece e preenche a cena... E tudo fica harmônico, o abacateiro, a acerola, o jambeiro, emolduram os rostos felizes... Obrigada por dividir esse momento mágico, com todos nós, através da escrita... Por causa dela, podemos enxergar do teu ângulo!!!

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  11. Cláudia Maia, meu amor, minha afilhada, poeta! A poesia em ti ganha expressão que só quem lê com a dimensão da alma pode alcançar. É lindo demais o teu sentir, os sentidos misturam-se na aparente confusão do teu existir no aqui e agora, mas é confusão só aparente, de fato é pura sinestesia, expressão subversiva da noção temporal só possível de ser nos de poesia, só os de poesia alcançam. Um beijo azul, querida!

    Kelsen Bravos

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