segunda-feira, 7 de maio de 2007

Esperança verde-marinho

Ai Fortaleza, te digo agora como poeta, só suspirando!
... eu acredito em você, perdoe o tratamento.
Se não acreditasse, sumiria daqui como animal que foge sem dar a mínima...
Antônio Girão Barroso




Se a elite capitalista torna São Paulo um pasticho de Nova Iorque, a de Fortaleza tenta fazê-la uma caricatura de Miami. O que me leva a essa afirmação? Uma seqüência histórica de fatos que em nome da “modernização” dos costumes impinge uma ideologia predadora em que prevalecem os escrúpulos plutocratas, ou seja: “se o fim é o lucro não importam os meios, principalmente se o lucro é nosso”.

Dessa forma, nesse jogo sem lei, ganha quem deixa de lado valores de responsabilidade social e envereda pela seara do querer levar vantagem em tudo e de qualquer jeito, do quanto mais tem mais quer. Daí surgem os novos ricos em todas as áreas, que se somam aos herdeiros de latifúndios, indústrias, financeiras e da classe política que a eles se locupletam. Para afirmar sua força e obter prestígio, o vencedor desse jogo quase sem regras tem de mostrar o quanto pode comprar e ter, é a regra do vale pelo que tem. Isso gera um exibicionismo consumista de futilidades. Tudo que é efêmero vira necessário. Um mundo frívolo se instaura. Em seus carros importados, os filhos do fútil exibem sua ideologia: "Não sou o dono do mundo; mas sou filho do dono!".

Contagiam até a sagrada área da educação, primeiro sucateando escolas e universidades promotoras de estudos consistentes e em seu lugar instituem cursos de diplomação rápida muitos deles com base em literatura de auto-ajuda; esta, uma verdadeira liturgia da banalidade. À propósito de liturgia, não é à toa que surgiu nesse Brasil uma tal “empresa” Universal em nome do reino de Deus.

Esse processo predatório é bem antigo. A invasão ocidental gerou aqui o reino da aparência. Um exemplo simples disso são as roupas de lá que nunca deixaram de ser usadas aqui; apesar do forte calor tropical. Pura exibição. Como vemos, quase nada mudou até hoje.

Os efeitos de tal cultura sobre Fortaleza são desoladores. Os exemplos são inúmeros. Vou me ater apenas a um cenário que encanta ou fere a todos que chegam por aqui, o litoral, a beira-mar – das velas do Mucuripe ao pôr-do-sol da ponte velha que ainda não caiu.

Há menos de cinqüenta anos, o litoral de Fortaleza era povoado de pescadores e suas jangadas ocupavam não só a enseada do Mucuripe. As embarcações fundeavam ao longo da beira-mar no sentido oeste até a praia Formosa, que não tem esse nome à toa.

Na areia, era comum se ver varais com as redes de pesca estendidas nas quais os jangadeiros ou faziam reparos com suas agulhas de espinha de peixe ou estavam mesmo era confeccionando um novo arrastão. Prontas, eram dali mesmo testadas. Lançadas ao mar, ao serem puxadas vinham carregadas de peixes.

Hoje não mais se vê isso, senão na enseada do Mucuripe, onde há minguados barcos, quase nenhum peixe e pouquíssimos jangadeiros. Para onde foram os outros? Para a favela, pois a indústria pesqueira tomou seus lugares. E nada lhes deu em troca além de desemprego e fome. É a força da grana destruindo coisas belas.

Quando a elite descobriu o banho de mar, de repente o cenário da praia foi-se transformando, algumas melhorias ocorreram: calçadões, barracas, a urbanização enfim. Era a força da grana erguendo coisas belas.

A brisa do mar, o sol-posto, o céu estrelado ou as noites de plenilúnio e a aurora, espargindo luz no verde marinho e esperança nos corações cansados, se fundiam num canto de sereia aos boêmios da cidade seduzindo-os para os encontros sem-fim.

Entendamos por boêmios aqueles que são contestadores, têm o afã da liberdade, a emoção não lhes cabe em si, estão sempre - por mais que contidos - a transbordar de tristeza, de alegria, de inconformismo. Idealistas, por isso desconcertados do padrão.

O lugar da boêmia é onde o boêmio está. Costumo dizer que boemia é epifania que se constitui na gente. Ela está, portanto, em todos lugares e em lugar nenhum. Mas um canto de Fortaleza ficou marcado como reduto dessa gente que por não caber em si reverbera arte e contestação em forma de poesia, música, pintura, teatro, manifestos, política, enfim, na melhor acepção da palavra. O Estoril, a rua dos Tabajaras e seu entorno são esse lugar.

O Estoril passou a ser um belo restaurante que promove festivais gastronômicos de lagostas e camarões e reduto de encontro entre turistas e acompanhantes. Um lugar sem arte, onde quem o freqüenta testemunha, como quase todos em seu entorno, o prostiturismo que empesta a orla de Fortaleza. Conseqüências da lei plutocrata do “se o fim é o lucro não importam os meios, principalmente se o lucro é nosso”. Hoje o Estoril está fechado, abandonado pelos gestores da cidade; mas os “turistas” e as acompanhantes continuam por lá.

Tento lembrar de quando minha Fortaleza perdeu a delicadeza e a memória me fez ir bem mais longe do ano em que nasci, fui de carona na voz do texto do poeta Antônio Girão Barroso, numa crônica sobre Fortaleza, em que ele, estranhando o crescimento da cidade, pontua perguntando a ela: “Fortaleza, você está grávida, meu bem?”

 Daquele tempo até hoje, é óbvio, a Aldeia cresceu. Que mal há nisso?! Até os filhos crescem!!!. Não há, portanto, mal algum, certo? Errado. Ela cresceu, como estava a comentar, sempre totalmente à revelia dos que a amavam/amam e que nunca foram contra o seu progresso. Os poetas sempre ficamos ali, alijados, do progresso da cidade imposto pelo (mau)gosto consumista de uma elite fútil.
Antes de o Estoril deixar de ser um portal para boemia, havia o Cirandinha e, bem depois dos dois, o Cais, que se tornou assim uma espécie de tábua de salvação para náufragos. Tudo foi engolido, até ele, pela sanha do lucro e por causa de nossa incompetência de defender a delicadeza.

O fato mais triste é que agora estamos dispersos, e por mais que inventemos cais, sinto que não teremos mais esses ancoradouros; por outro lado tento me apegar numa esperança verde-marinho pelo fato de que ninguém mais pode tirar esses lugares de nós, nem o meu de mim e nem o de cada um de si; entretanto, sei, o ruim é que "tiraram" o Cais de todo mundo. E nos dispersamos.

"Expulsos” como os jangadeiros, deixamos livres os espaços para a transformação grotesca de Fortaleza numa Miami dos trópicos. Com essa finalidade é que os vendilhões tentam cada vez mais transformá-la para nós numa porca velha parida, ou seja, uma mãe que devora os próprios filhos.
(Essa comparação, o Lira Neto, ao som de Vinícius, numa libação vespertina lá no Cais, foi quem me disse que lhe disse Antônio José Forte, um pianista sem igual, que o mercado local e a cidade ignoram. “Fortaleza é uma porca velha”, disse-lhe por isso o músico boêmio.)
Essa realidade não é privilégio de Fortaleza, é brasileira. O que então apaixonados pelo tempo da delicadeza podemos fazer para mudar essa história?

Cansado de esperar, arregacei as mangas e me juntei a outros sonhadores de pés no chão, e depois de uma eleição histórica elegemos uma administração municipal comprometida com os destinos de Fortaleza, a fim de cercar a tal porca velha, para, em breve, dela nos livrarmos. E ao fazermos isso salvarmos nossa cidade-amante, que para muitos – enganados que estão pelas palavras do poeta Paula Ney – é loura e desposada do Sol; mas de fato é mestiça e solteira e "quase" livre, descendente de Iracema, tão linda quanto ela.

Uma bela mulher de quem já ameacei ficar de mal – como fez Dorival Caymmi com a morena Marina –, quando ela, a minha então ingênua Iracema, influenciada pelo meio fútil, quis se oxigenar para ficar loura e seduzir a quem vive atentando contra sua beleza natural.
Os tempos, entretanto, são outros, pois a mestiça está consciente de que ser falsa loura pode torná-la de todo feia como quase feio ficou-lhe o rosto depois da operação plástica que fizeram na beira-mar, calçamentaram ali, aterraram aqui, edificaram acolá, no sentido de a quererem cada vez Miami. E a nós, cada vez alhures!!! Como muitos que já daqui se foram dizendo que para nunca mais voltar. Particulamente espero que a saudade do verde marinho nessa gente que partiu se transforme em esperança sabiá de que nos fala Tom Jobim.
Kelsen Bravos

7 comentários:

  1. Beleza de crônica, Kelsen! Concordo plenamente com vc.

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  2. Querido, adorei tudo: a idéia, o texto belíssimo, a maquete, mas tive dificuldade de visualização das letras, pequeninas, brancas num fundo preto. Cegueta como sou, já viu, né? Já mandei outra postagem que não entrou. Deve ser algum problema no link dos comentários pois, como vi agora, não tem nenhum, o que acho difícil ter acontecido de ninguém ter querido comentar tanta beleza literária. Bjão.

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  3. Oi Nilze,

    Estamos unidos pela delicadeza de Fortaleza.

    Um beijo azul.

    demi?
    Lêda?
    Mudei as cores e aumentei a letra.
    Que bom que você gostou. Que a boemia nos abençoe!

    Beijo azul.

    Kelsen Bravos
    Kelsen Bravos

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  4. Estamos prestes a sermos devorados, porem vamos ficar com os corpos insossos para que sejamos cuspidos. E que nesse momento destemperados e jogados ao longe não viremos às costas a essa mãe ingrata.
    Vamos dar a ela outros alimentos para que rejuvenesça com a beleza sublime de uma mãe verdadeira.
    Obrigado pelo blog, seus textos precisam navegar nesses mares de bits, pois dos Verdes Mares você já é conhecido e dele já é batizado.
    Viva Kelsen Bravos!!!

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  5. Hehehehe...

    Esse negócio de ser insosso não é para como a gente não, Daniel.

    Nós somos é reimosos!

    E ai de quem duvidar! Pois não tem esse negócio de ai-porque-tá-doendo não...

    Kelsen Bravos

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  6. Bom nome para um banda Punk!!!
    Os REIMOSOS! Uhuuuuhuhuh!
    Um grande abraço!

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  7. Com certa razão muitos dizem que a tal administração fez muito pouco até agora (para realizar mais teria de efetivar em quatro anos o que não foi feito em 20 e mais o que tem de cumprir na própria gestão); mas o que vem fazendo aos poucos é semear muito, e para todos, com prioridade aos da base popular.

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