quarta-feira, 18 de abril de 2018

Justo - Chico Araujo*


Foi só saber o sexo, o pai taxou:

- Francisco Justo!

A mãe, entre dócil, incrédula e insatisfeita redarguiu:

- Francisco Justo?

Com os olhos chorosos de felicidade incontida, a voz trêmula de satisfação, a convicção em Fé inabalável, o pai replicou:

- Claro! Francisco em homenagem ao grandioso São Francisco; Justo como uma espécie de confirmação, por duplicação, das atitudes justas realizadas pelo Santo. Esse menino terá tudo para ser justo em sua vida. Saberá reconhecer o bem e negar o mal; defenderá as causas em benefício dos necessitados.

O pai realizou esse discurso numa alegria inegavelmente sincera. A mãe, contagiada pela alegria do marido, mas ainda reticente, o interpelou:

- Você sabe que São Francisco somente se tornou Santo depois dos vinte e quatro anos, não sabe? Antes, ele deu muita preocupação aos pais, porque só gastava o dinheiro deles com farras, não queria saber de trabalho, nem de estudo.

O pai desalegrou um pouco, mas continuou:

- Sei. Mas depois que criou juízo foi sempre justo, foi sempre amigo das pessoas necessitadas, até dos animais ele foi amigo.

- Tá. Mas já que estamos quase diante de uma duplicidade desnecessária, que tal ficarmos somente com Francisco ou com Justo? Um nome só é suficiente. Entre esses dois nomes, eu gosto mais de Francisco. Acho que tem mais a ver com nossa formação e nossa cultura.

O marido não era daqueles que gostava de contrariar a esposa. Pelo contrário, o que o deixava feliz era a felicidade dela. Assim, não permaneceu em questão, preferindo levar a ela mais um prazer:

- Tá bom, Maria. Francisco, então, que sei será justo e também terá vida normal, semelhante à de todos os jovens, tendo especial atenção à vivência e prática da justiça. Ele saberá ser justo.

O menino nasceu bem, forte, cheio de saúde. Foi batizado Francisco e passou a ostentar os sobrenomes da mãe e do pai, conforme a tradição. Sem mais.

Teve infância saudável, sob os adequados cuidados e ensinamentos de pai e mãe, de mãe e pai, sem predominância de um sobre o outro, pois naquela casa nada ocorria unilateralmente – embora se soubesse que a fala de predominância em termos finais era a de Maria, pelo motivo já apontado.

Foi, a pré-adolescência de Francisco, tranquila, pacata, sob os constantes olhares cuidadosos e ensinamentos adequados dos progenitores, com base no que já se pode compreender sobre eles. Além desse ensino caseiro, teve direito a instrução formal, em escola apropriada às posses da família. Não será aqui relatada como foi sua adolescência, pois, em verdade, de tão comum, não importa. Quem já viveu essa fase fique livre para liberar sua imaginação.

Passou o tempo e Francisco completou exatos vinte e quatro anos e, nesse exato dia, acordou cedo, tomou café da manhã com os pais – fatias de pão feito torrada, leite, ovos mexidos, bananas, melão, mamão, maçã, café –, escovou os dentes, banhou-se, vestiu-se e saiu de casa como se fosse para um dia normal de trabalho. Pediu benção ao pai e à mãe e por eles foi abençoado. Disse até breve para os dois irmãos – a descendência não se resumia a ele – como sempre fazia e, antes de sair, recebeu, de todos, um abraço especial de parabéns.

Mas aquele dia não seria normal. Não seria comum. Não seria semelhante aos anteriores.

Desceu do ônibus duas paradas antes daquela costumeira onde descia quando em rumo ao trabalho, 1 hora após nele subir. De imediato foi à loja de estamparias para receber um conjunto de cinco camisas de malha que houvera encomendado dias antes – um presente de aniversário para si. As camisas tinham cores distintas, mas a mesma inscrição feita em letras “gritantes” e em negrito: QUEM É JUSTO PRATICA JUSTIÇA! Dentre as cinco, escolheu, para uso imediato, a de cor branca com escrita vermelha. Seguiu para o trabalho, tendo no espírito a sensação de que o dia era mesmo especial.

Já próximo ao elevador, recebeu de dois colegas abraço com felicitações pela data. Os dois observaram a frase na camisa. Um deles pontuou:

- Tá disposto, hein?

Os três gargalharam, enquanto entravam no elevador. Nele, outras quatro pessoas visualizaram o texto na camisa, duas das quais balançaram a cabeça em ritmo de concordância, discreto sorriso como testemunho de aprovação.

À saída do elevador e mesmo em frente a ele, no vidro da porta que permitia acesso ao grande e famoso escritório, a inscrição latina Civis ad hoc ius est scriptor politica potestas alertava para o fato de que “o poder político não pode estar acima do direito do cidadão”.

Foram percorrendo, abraçados e sorridentes, o longo corredor da empresa. Ladeando o caminho, à esquerda e à direita, divisórias, nas quais os diversos colegas e o próprio Francisco postavam-se diariamente para cumprirem jornada de trabalho. À medida que a extensão daquela trilha ia diminuindo, os companheiros de Francisco deixavam o trabalho para abraçá-lo e felicitá-lo, em alegria insuspeita, todos declarando apoio à mensagem enviada por ele a partir da camisa em uso.

A vozearia em torno do aniversariante foi diminuindo e chegando quase ao silêncio total, quando a porta que olha o corredor, ao seu final, abriu-se para mostrar a todos a presença séria do superior que, quinze dias antes, declarou, sem qualquer motivo aparente, a quem quisesse ou não ouvi-lo, em uma reunião de última hora:

- Quem quiser ficar aqui, siga as regras! As regras, eu as crio. Está claro? Quem tiver juízo, obedece. Está claro? Entendam que esse é o nosso mundo e no que se refere a ele e às possibilidades de vocês nele atendam a mim que tudo estará certo.

A divisória ocupada por Francisco ficava à esquerda da porta ao final do corredor. Dividia aquele espaço com os dois que o abraçaram ainda no andar térreo do prédio. Antes de chegar de vez ao seu devido local de trabalho, olhou para a autoridade postada à frente de todos e desejou bom dia. E esperou resposta.

Para a estupefação de todos, após alguns segundos, a resposta veio:

- Bom dia, senhor Francisco. O senhor aniversaria hoje?

- Sim, aniversario.

- Por isso essa algazarra toda?

Não houve resposta a esse questionamento.

- Pois bem... Dou-lhe meus parabéns, também. Desejo muitas felicidades ao senhor.

- Agradeço.

- O senhor merece. Mas, agora, voltemos todos ao trabalho que o dia hoje promete.

A esse comando, todos foram ocupando seus postos.

- Ah, senhor Francisco... Achei bem inteligente a frase na sua camisa. Creio ser esse o nosso espírito aqui: QUEM É JUSTO PRATICA JUSTIÇA!

Enquanto aquele chefe retornava a sua sala, porta já quase fechada, uma frase, não ouvida por ele, fez alguns darem risadas abafadas:

- Sabe lá de nada, inocente!

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*Chico Araujo - professor, poeta, contista e compositor, publica toda quarta-feira no Evoé! O título "Justo" compõe o Abecedário de Crônicas do Evoé e foi escrito entre 8/04 e 9 de abril de 2018. Leia mais Chico Araújo em Vida, minha vida...

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