terça-feira, 12 de setembro de 2017

30 minutos – ou um fio de memória que segura mãe e filho em um choro de saudade – CHICO ARAUJO


A tarde já seguia para seu meio, quando o telefone celular trouxe Ednardo e A palo seco para o meu despertar da tão querida sesta.
Era minha mãe, impulsionada por inequívoca profunda necessidade de me contar sobre um achado. Tão gentil comigo, primeiro me perguntou se estava em casa. Como dissera que sim, me inquiriu se me atrapalhava. Porque lhe disse que não, ainda me questionou se eu não estava trabalhando – sempre ciente do cotidiano do professor, ela também professora por quase toda a vida – para, agora segura de não me estar sendo incômoda, iniciar sua narrativa: Estava aqui arrumando uns livros, quando encontrei esse: Quando eu voltar a ser criança.
E fez silêncio. Um silêncio que era um tempo para, de fato, eu responder se me lembrava. Fiquei repetindo em voz alta o título e o que me vinha à memória era uma capa de livro branca com alguma gravura no centro, mas isso não era uma certeza, antes uma inconsistente especulação – quantos livros já li com capas semelhantes a essa minha confusa quase lembrança? Minha mãe nos tirou do silêncio:
- Lembra não, né? Pois preste atenção no que vou ler.
Passou a ler para mim uma dedicatória que escrevi para meu pai em exemplar de Quando eu voltar a ser criança, um livro não escrito por mim, um livro de muitos impactos em minha vida (naquela época) de pai recente. Sim, pai recente, pois, de certa maneira, eu apenas iniciara minha história como pai, uma vez que dos cinco filhos que geraria, em 1986 apenas Aline já pisava seus espaços nesse mundo.
Pelo telefone, minha mãe me presenteou com a leitura da dedicatória que fiz para meu pai em presente dado a ele em 08 de agosto de 1986. Naquele Dia dos Pais, disse a ele, pela dedicatória, que a leitura daquele livro, em especial, me trouxera a compreensão do que significava “ser pai”, fato que me fizera compreender suas palavras, suas ações, sua maneira de ser Pai.
Minhas breves palavras escritas quando contava 26 anos de idade de certa maneira buscavam instigar meu Pai a se reconhecer – por muitas atitudes suas de carinho, atenção, respeito, incentivo, brincadeiras – nas páginas de Quando eu voltar a ser criança, não pelos fatos narrados em si, posto que, os contextos, outros, mas pela maneira amorosa que transbordava do personagem principal daquela obra, Janusz Korczak, em favor de crianças confinadas em um orfanato existente em Varsóvia durante a ocupação nazista. Janusz Korczak – personagem real, não ficcional –, médico e pedagogo, dedicou boa parte de sua vida a crianças desconhecidas, porém necessitadas de alguém que as guiasse, que delas cuidasse diante de tantas experiências difíceis por conta dos conflitos evidenciados no período da Segunda Guerra Mundial. O fim trágico de 200 delas foi o mesmo seu, por optar não abandoná-las.
Os contextos de meu Pai foram outros, todos bem distantes dos conflitos bélicos mundiais nos meados do século XX. Guerra, para ele, somente pelas notícias de jornais que desde jovem se acostumou a ler. Sua amorosidade, no entanto, em relação aos filhos e às crianças em geral, surgia na simplicidade de ser, simplicidade essa que acredito ter se fortificado nele a partir de sua própria experiência infantil, um desenho feito para ser realizado quando adulto.
Pelo telefone, hoje, dia 08 de setembro de 2017, minha mãe me presenteou com a leitura daquela dedicatória feita para meu pai no livro a ele dado em 08 de agosto de 1986. Pelo telefone, as lágrimas que ela chorava pela saudade sentida do companheiro de tantos e tantos anos foram as incentivadoras às que me escorreram dos olhos pelo rosto sensibilizado pela inundação de uma memória especialíssima de um semblante alegre e de uma voz tranquila que me repetia, junto a dedos da mão provocando cócegas: Olha ele rindo... Olha ele rindo... Olha ele rindo...
Até que eu ria!
Minha mãe e eu choramos juntos hoje à tarde, aproximados por uma ligação telefônica, enquanto nos preenchíamos, pela memória, da presença de um ser fundamental na vida de cada um. Ela chorava pelo marido já olhando por nós de outra dimensão; eu, pelo pai que eu gostaria muito tivesse tido a oportunidade de conhecer todos os netos. E bisnetos. E tivesse tido a oportunidade de fazê-los rir como fez a mim. E vivesse com eles a experiência da construção de uma arraia. E fosse com eles à praia e ficar fitando o mar quebrando suas ondas em espumas brancas. E pudesse dizer a eles todos o que disse a mim; pudesse-os orientar para o bem como me ensinou e aos meus irmãos.
Foram 30 minutos de conversa. Trinta minutos construindo a tessitura de um fio de memória e saudade. Um tecido indestrutível. Elos de longa história entre o bem... e o bem.
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Chico Araujo publica toda quarta-feira no Evoé! A crônica "30 minutos – ou um fio de memória que segura mãe e filho em um choro de saudade " foi escrita em 8 de setembro de 2017. Leia mais Chico Araujo no blog Vida, minha vida...

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