Caminho equilibrista sobre o fino muro que separa o apolíneo - império da razão - do dionisíaco - anarquia dos impérios. Antes, a mais leve das brisas me fazia flanar dionisíaco. Ô beleza! Era o mais feliz ali no lado esquerdo (que é o lado do coração). Só um cataclismo a lá tsunami, às vezes, fazia-me recolher para o outro lado. Com o passar do tempo me acostumei a andar por sobre o muro sem risco de pender pra lá ou pra cá. Depois fui me tornando cada vez mais formal, mais apolíneo. Engolido pelo lesco-lesco, hoje o trabalho é que me manda. Gosto disso; mas rotina implacável às vezes esgota.
Aí bate uma saudade, esse sentimento revelador de que o presente não está muito bom, e desejo estar daquele lado canhestro do muro. Aí o menino inquieto, o poeta ávido de vida, se arvora dentro de mim, feito um saci a pular dentro do meu coração, reclamando espaço. O fauno mais perseguidor de ninfas se agiganta e me ordena cumprir um ritual bacante, boêmio.
Buscando-me conter, olho o relógio. Geralmente é por volta das 16 horas. Quase fim de tarde. Ainda há sol lá fora e calor e brisa marinha (e mulheres que passeiam sobre os calçadões com seus sorrisos e roupas coloridos). Ainda há tempo... pronto já caí do fio do muro. Saio da sala como quem sai do claustro. Meço as possibilidades e vou à beira-mar. Quero ver o pôr-do-sol. Preciso vê-lo e buscar de novo o equilíbrio nesse ritual cotidiano que a natureza nos oferece.
O pôr-do-sol é a mais pura celebração da natureza. Impossível não se tornar melhor ao reverenciá-lo. Para este rito, Fortaleza dispõe alguns altares. O mais conhecido é o da ponte – construída por ingleses para o comércio; mas os cearenses a batizamos Metálica. Sim a Ponte Metálica é uma catedral para a homilia do sol-posto.
Pra lá me dirijo, caminho sobre ela, sinto o cheiro e o gosto salitrado da brisa aspergida pelo quebrar das ondas dos verdes mares bravios do Ceará nas longarinas da velha e reformada ponte. Alcanço o lugar mais ermo, estou pronto para as lições do silente sermão do Sol, que é o da renovação.
De início, ele é cáustico, metálico. Inclemente, inquieta, multiplicando o desconforto, o estresse de quem o está a observar. Olhá-lo de frente, afrontá-lo assim, não há quem possa. Seria um ato irracional insistir nisso. Quem fizer essa irracionalidade findará com cegueira também física. Eis a primeira lição: a da resignação. Sugere: olha para ti mesmo, fecha os olhos e medita.
Mas o que se inicia pungente, vai amenizando. Sai do metálico incadescente aos matizes de vermelho, roxo e púmbleo. Aos poucos, devolve ao ser a possibilidade de olhar. Até chegar o momento de iluminação sem a presença do astro, que já mergulhou na linha do horizonte; mas sua luz, agora amena, permanece e proporciona a cada um ver o entorno de si. Sim, só para que as pessoas possam sentir que não estão sós e quanta beleza há no coletivo. Eis a segunda lição: a da contemplação. Não estás só, olha tranqüilo para as pessoas e as coisas, dá-lhes a tua atenção. Conduz ao mantra: Ama o próximo como a ti mesmo.
Por fim, o que é penumbra vai ficando escuro. Essa inversão de luz devolve por completo o ser a si mesmo. Só que o agora de novo ensimesmado livrou-se da tensão com que chegara e já tem guardado no espírito o espetáculo do pôr-do-sol. Nunca mais esse rito o deixará, pois aprendeu com a natureza um mistério da paz. É a terceira lição: a da transcendência. Reverbera: a paz está em ti, és a minha imagem e semelhança.
Cumprida a homilia do sol-posto. O equilíbrio deveria estar de volta, pois uma situação quase apolínea se instauraria, caso fosse direto para casa ou de volta ao trabalho, e se não houvesse o leste.
Mas, comigo, é só olhar para o leste e ver a lua se refletir nas águas já escuras da tarde-noite, onde brincam golfinhos, que o portal da boemia se abre. E assim, tranqüilo, pouso sentimental numa mesa de bar... um chopp, uma música, um olhar... um bate-papo falando da vida... e – quem sabe, na supremacia das emoções – braços, corpos suados, ao ritmo das ondas da preamar, fazendo amor, eternizam, do jeito humano, a tal homilia do sol-posto.
Kelsen Bravos
Aí bate uma saudade, esse sentimento revelador de que o presente não está muito bom, e desejo estar daquele lado canhestro do muro. Aí o menino inquieto, o poeta ávido de vida, se arvora dentro de mim, feito um saci a pular dentro do meu coração, reclamando espaço. O fauno mais perseguidor de ninfas se agiganta e me ordena cumprir um ritual bacante, boêmio.
Buscando-me conter, olho o relógio. Geralmente é por volta das 16 horas. Quase fim de tarde. Ainda há sol lá fora e calor e brisa marinha (e mulheres que passeiam sobre os calçadões com seus sorrisos e roupas coloridos). Ainda há tempo... pronto já caí do fio do muro. Saio da sala como quem sai do claustro. Meço as possibilidades e vou à beira-mar. Quero ver o pôr-do-sol. Preciso vê-lo e buscar de novo o equilíbrio nesse ritual cotidiano que a natureza nos oferece.
O pôr-do-sol é a mais pura celebração da natureza. Impossível não se tornar melhor ao reverenciá-lo. Para este rito, Fortaleza dispõe alguns altares. O mais conhecido é o da ponte – construída por ingleses para o comércio; mas os cearenses a batizamos Metálica. Sim a Ponte Metálica é uma catedral para a homilia do sol-posto.
Pra lá me dirijo, caminho sobre ela, sinto o cheiro e o gosto salitrado da brisa aspergida pelo quebrar das ondas dos verdes mares bravios do Ceará nas longarinas da velha e reformada ponte. Alcanço o lugar mais ermo, estou pronto para as lições do silente sermão do Sol, que é o da renovação.
De início, ele é cáustico, metálico. Inclemente, inquieta, multiplicando o desconforto, o estresse de quem o está a observar. Olhá-lo de frente, afrontá-lo assim, não há quem possa. Seria um ato irracional insistir nisso. Quem fizer essa irracionalidade findará com cegueira também física. Eis a primeira lição: a da resignação. Sugere: olha para ti mesmo, fecha os olhos e medita.
Mas o que se inicia pungente, vai amenizando. Sai do metálico incadescente aos matizes de vermelho, roxo e púmbleo. Aos poucos, devolve ao ser a possibilidade de olhar. Até chegar o momento de iluminação sem a presença do astro, que já mergulhou na linha do horizonte; mas sua luz, agora amena, permanece e proporciona a cada um ver o entorno de si. Sim, só para que as pessoas possam sentir que não estão sós e quanta beleza há no coletivo. Eis a segunda lição: a da contemplação. Não estás só, olha tranqüilo para as pessoas e as coisas, dá-lhes a tua atenção. Conduz ao mantra: Ama o próximo como a ti mesmo.
Por fim, o que é penumbra vai ficando escuro. Essa inversão de luz devolve por completo o ser a si mesmo. Só que o agora de novo ensimesmado livrou-se da tensão com que chegara e já tem guardado no espírito o espetáculo do pôr-do-sol. Nunca mais esse rito o deixará, pois aprendeu com a natureza um mistério da paz. É a terceira lição: a da transcendência. Reverbera: a paz está em ti, és a minha imagem e semelhança.
Cumprida a homilia do sol-posto. O equilíbrio deveria estar de volta, pois uma situação quase apolínea se instauraria, caso fosse direto para casa ou de volta ao trabalho, e se não houvesse o leste.
Mas, comigo, é só olhar para o leste e ver a lua se refletir nas águas já escuras da tarde-noite, onde brincam golfinhos, que o portal da boemia se abre. E assim, tranqüilo, pouso sentimental numa mesa de bar... um chopp, uma música, um olhar... um bate-papo falando da vida... e – quem sabe, na supremacia das emoções – braços, corpos suados, ao ritmo das ondas da preamar, fazendo amor, eternizam, do jeito humano, a tal homilia do sol-posto.
Kelsen Bravos