segunda-feira, 14 de maio de 2007

Sol-posto

Caminho equilibrista sobre o fino muro que separa o apolíneo ­- império da razão - do dionisíaco - anarquia dos impérios. Antes, a mais leve das brisas me fazia flanar dionisíaco. Ô beleza! Era o mais feliz ali no lado esquerdo (que é o lado do coração). Só um cataclismo a lá tsunami, às vezes, fazia-me recolher para o outro lado. Com o passar do tempo me acostumei a andar por sobre o muro sem risco de pender pra lá ou pra cá. Depois fui me tornando cada vez mais formal, mais apolíneo. Engolido pelo lesco-lesco, hoje o trabalho é que me manda. Gosto disso; mas rotina implacável às vezes esgota.
Aí bate uma saudade, esse sentimento revelador de que o presente não está muito bom, e desejo estar daquele lado canhestro do muro. Aí o menino inquieto, o poeta ávido de vida, se arvora dentro de mim, feito um saci a pular dentro do meu coração, reclamando espaço. O fauno mais perseguidor de ninfas se agiganta e me ordena cumprir um ritual bacante, boêmio.
Buscando-me conter, olho o relógio. Geralmente é por volta das 16 horas. Quase fim de tarde. Ainda há sol lá fora e calor e brisa marinha (e mulheres que passeiam sobre os calçadões com seus sorrisos e roupas coloridos). Ainda há tempo... pronto já caí do fio do muro. Saio da sala como quem sai do claustro. Meço as possibilidades e vou à beira-mar. Quero ver o pôr-do-sol. Preciso vê-lo e buscar de novo o equilíbrio nesse ritual cotidiano que a natureza nos oferece.





O pôr-do-sol é a mais pura celebração da natureza. Impossível não se tornar melhor ao reverenciá-lo. Para este rito, Fortaleza dispõe alguns altares. O mais conhecido é o da ponte – construída por ingleses para o comércio; mas os cearenses a batizamos Metálica. Sim a Ponte Metálica é uma catedral para a homilia do sol-posto.
Pra lá me dirijo, caminho sobre ela, sinto o cheiro e o gosto salitrado da brisa aspergida pelo quebrar das ondas dos verdes mares bravios do Ceará nas longarinas da velha e reformada ponte. Alcanço o lugar mais ermo, estou pronto para as lições do silente sermão do Sol, que é o da renovação.
De início, ele é cáustico, metálico. Inclemente, inquieta, multiplicando o desconforto, o estresse de quem o está a observar. Olhá-lo de frente, afrontá-lo assim, não há quem possa. Seria um ato irracional insistir nisso. Quem fizer essa irracionalidade findará com cegueira também física. Eis a primeira lição: a da resignação. Sugere: olha para ti mesmo, fecha os olhos e medita.
Mas o que se inicia pungente, vai amenizando. Sai do metálico incadescente aos matizes de vermelho, roxo e púmbleo. Aos poucos, devolve ao ser a possibilidade de olhar. Até chegar o momento de iluminação sem a presença do astro, que já mergulhou na linha do horizonte; mas sua luz, agora amena, permanece e proporciona a cada um ver o entorno de si. Sim, só para que as pessoas possam sentir que não estão sós e quanta beleza há no coletivo. Eis a segunda lição: a da contemplação. Não estás só, olha tranqüilo para as pessoas e as coisas, dá-lhes a tua atenção. Conduz ao mantra: Ama o próximo como a ti mesmo.
Por fim, o que é penumbra vai ficando escuro. Essa inversão de luz devolve por completo o ser a si mesmo. Só que o agora de novo ensimesmado livrou-se da tensão com que chegara e já tem guardado no espírito o espetáculo do pôr-do-sol. Nunca mais esse rito o deixará, pois aprendeu com a natureza um mistério da paz. É a terceira lição: a da transcendência. Reverbera: a paz está em ti, és a minha imagem e semelhança.
Cumprida a homilia do sol-posto. O equilíbrio deveria estar de volta, pois uma situação quase apolínea se instauraria, caso fosse direto para casa ou de volta ao trabalho, e se não houvesse o leste.
Mas, comigo, é só olhar para o leste e ver a lua se refletir nas águas já escuras da tarde-noite, onde brincam golfinhos, que o portal da boemia se abre. E assim, tranqüilo, pouso sentimental numa mesa de bar... um chopp, uma música, um olhar... um bate-papo falando da vida... e – quem sabe, na supremacia das emoções – braços, corpos suados, ao ritmo das ondas da preamar, fazendo amor, eternizam, do jeito humano, a tal homilia do sol-posto.

Kelsen Bravos

sábado, 12 de maio de 2007

O negócio é futebol

Se os torcedores de futebol brasileiros demorarem a acordar do sonho de que torcem por amor ao clube ou por amor à pátria, a realidade pode lhes trazer, no mínimo, depressão.

Há muito o futebol é negócio, seja comercial ou político. Na final de 1950, o discurso do administrador da Guanabara aos jogadores, minutos antes de eles entrarem em campo, transmitido por todas as rádios, foi um relato de soberba pela construção do Maracanã, à espera de um coroamento político.

Kubitschek, em cinqüenta e oito, torcia pela vitória da Canarinho, porque ela seria ao mesmo tempo estímulo ao seu “vitorioso” governo e analgésico para as mazelas populares. O presidente mineiro sabia que gente feliz não reclama, e povo sem dor não grita.

Em 1970, nos porões da ditadura, todo mundo torcia (menos os torturados) enquanto o pau comia. Todos juntos, numa mesma corrente "pra frente, Brasil!"

Lula não é diferente. Seria muita ingenuidade nossa inseri-lo entre o senso comum dos torcedores brasileiros. Acho até que ele preferia estar (ou pensa mesmo ser) entre a massa ignara; mas todo dia alguém tem de lembrá-lo de que é presidente da república do Brasil. O hexa fará muito bem a ele, como fez o primeiro campeonato a Kubitschek, e pode ser trágico para todos.

Irrita assistir aos telejornais. Sempre trazem as notícias das demais editorias e por fim as do esporte. Daí acontecer cena, no mínimo, esdrúxula. Os apresentadores falam dos mortos da guerra urbana, deflagrada pelos traficantes em São Paulo, no dia das mães, com toda a sua tragédia. Ato contínuo, mudam as feições tensas e com um sorriso largo anunciam: “Agora vamos falar de Copa do Mundo!”

Uma cena dramática como a de um palhaço que, depois de receber a notícia de que a filha morrera estuprada, entra no picadeiro sorrindo, porque o show tem de continuar. Acontece que o palhaço da história é um só. Depois do aplauso, ele ficará com sua solitária dor e irá à luta por justiça. No caso da copa do mundo, são milhões de palhaços a sorrir e a chorar em catarse.

Ganhar copa do mundo para o Brasil é um sentimento coletivo, as individualidades se diluem em meio a alegria geral. Configura-se a idéia de que nada pode atrapalhar esse momento, daí é tal de dane-se a dor de um, precisamos cantar para festejar a honra e o valor de toda nossa gente bronzeada.

Enquanto a gente bronzeada dança, a “elite branca e capitalista”, como diz Lembo, governador de São Paulo, contabiliza os milhões de dólares que lucra com o futebol.

O futebol é um lucrativo negócio. Pelé foi o primeiro jogador brasileiro a despertar para esse fato. Em 1970, antes do jogo contra o Peru, seguindo orientação do jornalista espanhol de ascendência germânica, Hans Heningsen, o Rei do Futebol pediu um tempo ao juiz e passou preciosos segundos atando os cadarços de sua chuteira Puma.

Com o gesto, Pelé justificava contrato de U$100 mil por quatro anos de exclusividade mais U$ 25 mil exclusivos pelo Mundial no México e mais 5% de royalties nas vendas dos tênis. Não foi só pelo talento que ele foi eleito (por quem mesmo!?) o Atleta do Século XX.

Para a copa de 2006, só as marcas de material esportivo, bola, chuteiras e uniformes, como as alemãs Puma e Adidas, e a estadunidense Nike esperam lucrar U$ 2 bilhões.

A seleção brasileira é patrocinada pela Nike. Firmou com a CBF um contrato de U$200 milhões desde 1996. Com esse contrato acabou-se de vez a inocência dos jogadores. A empresa exige profissionalismo. Quer que o time do Brasil seja tão eficaz como o do basquete estadunidense. Este sonho, pelos talentos que temos, não está muito longe.

Como a maioria dos brasileiros, adoro futebol. Há tempos não brinco de futebol, faz tempo não bato um racha. Gosto da plasticidade desse esporte. Tenho na medida a diferença entre jogo e brincadeira. Uma partida bem disputada é espetacular. Se há então jogadores ricos e felizes, preocupados apenas com a arte, nada melhor. A seleção brasileira está quase assim. Torço que ela encante o mundo com o que o futebol tem de mais belo.

Torço sim pela seleção brasileira, como torço pelo glorioso Ceará Sporting Clube. Não com cega paixão. Sem essa de nação, sem essa de pátria de chuteiras. Sem essa de ficar me digladiando com torcedores de times rivais, como fazem as fanáticas massas de manobra, denominadas torcidas organizadas.

Entre torcidas organizadas, há organizações criminosas, ligadas ao tráfico e à mesma bandidagem que transformou o dia das mães deste 2006 em tragédia. A segurança pública precisa ficar esperta com o que eles podem aprontar durante a copa do mundo. Em certo aspecto, os bandidos são iguais aos capitalistas que investem no futebol, não amam o esporte querem apenas tirar proveito dele.

Por isso em vez de me digladiar “por esporte”, prefiro me reger pelo Estatuto do Torcedor (Lei N° 10.671) e exigir transparência nas negociações da CBF e da Federação Cearense de Futebol e fazer valer meu direito de consumidor. Nos Estados Unidos o consumidor é muito respeitado, porque lá eles reclamam seus direitos. Façamos o mesmo.

Evoé!

Às vezes ficamos assim malemolentes, depois que tomamos um bom vinho. E um bom vinho para um boêmio é – antes de tudo – razão para um encontro libativo. Livre daqueles exagerados comentários sobre as características organolépticas da bebida. Esses discursos são uma antilibação. Acabam com quaisquer possibilidades de diálogo.

Encerro essa arrogante trelência, dizendo: Que vinho que nada! Sou viciado mesmo é em gente! Porque é o que sou. Em tudo que penso e faço o que me predomina é a essência humana.

Às vezes há quem refute esse meu vício, afirmando que ser humano é ter todos os defeitos, é não lutar contra a natureza animal que nos habita. E baseia seu argumento elegendo como máxima a “sábia” fábula do escorpião.

Aquela que dá conta de um aracnídeo desses que pediu “carona” a um ser anfíbio (um sapo), para transpor um rio sobre as costas dele. No meio do caminho, o tal escorpião crava-lhe o venenoso esporão no lombo de seu benemérito Caronte. O anfíbio, impactado com tamanha traição, para tentar entendê-la pergunta por que tamanha perfídia. Ouve como resposta que escorpião é naturalmente traiçoeiro, e não resistiu lutar contra a própria natureza.

A fábula tem a sabedoria do bom observador que tenta explicar o comportamento humano, fazendo analogia entre a natureza do lacrau e do humano. Mas é de fato um desmedido equívoco, por dois motivos: primeiro, porque mais do que comparar o humano com o inumano, tenta explicar um pelo outro. Grande tolice! O ser humano de verdade domina o animal que é em si mesmo. Ao fazer isso, substitui pela solidariedade a competição – circunstância até compreensível entre os animais, porque eles competem por sobrevivência. Daí o paradoxo no exemplo do escorpião. Por sobrevivência, ele não deveria matar o seu benfeitor; mas fê-lo exatamente para sobreviver. O paradoxo é uma criação humana. Coitado do bichinho, o que ele tem a ver com a covardia do bípede racional? A resposta a essa questão é o segundo ponto: nada. É pura transferência, sublimação do atraso de quem ainda tem medo da plenitude de ser humano.

A essa plenitude prefere a barbárie da competição, espaço mais aético que existe, do ninguém por ninguém, do cada um por si. Daí perder-se no entremundo do racional e do irracional. Querer conquistar destruindo, logrando, tirando vantagem, lucrando, matando quem lhe mostra num gesto o caminho: a solidariedade.

Ora pois o humano de verdade não acumula, porque o excedente ele comunga. E o bom vinho é um eloquente exemplo de comunhão, vem sempre acompanhado do pão que é repartido entre todos, por isso todos desse pão que compartilham são companheiros. A libação antes de tudo e por excelência é um ato de companheirismo, de solidária comunhão, jamais de competição ou exibição organoléptica.

A libação é um ato boêmio e a boemia é o primeiro estágio da evolução humana, pois o boêmio ama o próximo como a si mesmo. Até chegar o dia de transformar o próprio sangue em vinho e o próprio corpo em pão.

Evoé!!!!

Kelsen Bravos

quarta-feira, 9 de maio de 2007

Fogão a lenha

“Que tal almoçar aqui em casa?”. O convite partira de Almir Mota, um contador de histórias e tanto. (Era sábado, dia 30 de setembro, de 2006, véspera das eleições para presidente, senadores, deputados e governadores).

A casa de Almir Mota tem um fogão a lenha. Fica num bairro bem bucólico de Fortaleza. A natureza ainda exubera por lá. É um bairro simples, suburbano. Com toda a esquisitice de ruas improvisadas.


Havia comprado-a recentemente. Nem bem recebeu a casa, foi logo fazendo adaptações. Alargou a cozinha, construiu um alpendre no quintal e nele fez surgir um fogão a lenha.


O alpendre é ensombrado, ladeado por goiabeira, jambeiro, aceroleira, abacateiro e cajueiro. Cada um exala seu aroma, inclusive, o fogão, com seu cheiro de lenha apagada.


O perfume do fogão me faz lembrar o cheiro do cacique Daniel dos Pitaguaris, a quem eu conheci durante a 7ª Bienal Internacional do Livro do Ceará, da qual fui coordenador do espaço infantil. Quem o me apresentou foi o poeta e arte-educador Ray Lima. Ele fora à bienal socializar o excelente trabalho “Os Meninos Autores”, desenvolvido pela Escola Zumbi em Maracanaú, da qual é idealizador.


Ray me informou que o cacique ao saber do evento fez questão de vir dançar o torém, dança étnica dos pitaguaris, no palco do espaço infantil, a que denominei de Minarete Encantado. Tudo acertado. Eles vieram e dançaram. Foi um sucesso.


O fotógrafo Chico Gadelha, que cobria a bienal, me inquiriu pelo torém. Disse-lhe que já ocorrera. Ih... dissemos os dois. Ficaríamos sem o registro da participação dos pitaguaris? Jamais. Pedi para o cacique voltar ao palco. Ele aceitou com satisfação.


Todavia quase causo um conflito étnico (para ser bem exagerado), pois ao microfone, apressado, dissera para a renovada platéia que os pitaguaris compunham um dos eixos de ação da Escola Zumbi e apresentariam ali uma manifestação cultural de seu povo: o torém.



Cacique Daniel subiu ao palco acompanhado dos curumins. Cantou uma introdução e não dançou; mas ao microfone falou de forma serena que não compunham eixo nenhum, que os pitaguaris, assim como todas as nações nativas desse continente, eram o berço da cultura brasileira e das Américas. Que não havia ninguém ali presente que não tivesse sangue de índio, que ele respeitava todos os povos e suas manifestações, mas queria deixar claro que os pitaguaris eram uma nação independente, com cultura e identidade próprias, que mantinham escolas com a pedagogia de sua gente. Que todos presentes e não presentes é que pertenciam à cultura deles e não eles é que pertenciam a outra cultura. Balançou o maracá, entoou um canto de despedida, agradeceu e se foi do palco; mas fez questão de umas fotos comigo.

Chico Gadelha, fotógrafo de mão-cheia, registrou esses momentos, inclusive o meu aperto de mão com cacique. Fiquei tão próximo dele que lhe senti o cheiro. Matei minha curiosidade infantil de qual seria cheiro de índio. Agora sei: cheiro bom de fogão a lenha apagado. Como o cheiro do povo do sertão do meu Ceará.


Esse cheiro, inclusive, deve ter ficado na memória afetiva dos contadores de histórias que vieram participar do I Encontro Internacional de Contadores de Histórias no Ceará. Um evento que fez parte da programação oficial da 7ª Bienal.


O encerramento do encontro, dia 26 de agosto, foi com a Maratona de Contação de Histórias pela Paz. Nem bem acabou o evento, todos rumamos para a casa de Mota, aliás, para o fogão a lenha de sua casa. Em torno do qual haveria uma roda de histórias. Foi um encontro lítero-musical, gastronômico e multicultural.


Marcella Romero, do México, aprendeu, com a minha mulher, Lidiane Moura, a fazer tapiocas. Disse que em casa iria criar a "taccooca", uma mistura de tacco mexicano com a tapioca cearense. Para Socorocaba, Marcos Boi, blues man e partner de contação de Zé Bocca, levou as lições práticas que lhe dei de como fazer caldo de sururu. Fomos responsáveis pelo pitéu que saiu na madrugada e reanimou a todos.


German Jaramillo Duque já me escreveu da Colômbia registrando a saudade da “roda de histórias na casa de Almir”; do Peru, Cucha Aguila exige mais encontros junto ao fogão à lenha; do Brasil afora Luciana Tenório, Fabiano Moraes, Rogério Andrade Barbosa, Giba Pedroza e Renata Mattar, Zé Bocca e Marcos Boi, além dos cearenses Júlia Barros, Mara Monteiro, Josy Correia e Júlia Fiúza, Raimundo Moreira, todos relembram sempre o encontro como um dia mágico.


Houve contação de histórias, declamações e muitas canções, acompanhadas pela rabeca de Marcos, o acordeon de Renata, os tambores de Júlia Fiúza... Tudo foi-se acomodando à magia do fogão a lenha.


Andréa Havt, que organizara a Festa do Livro e da Leitura de Aracati (evento que se integrou, em 2006, à 7ª Bienal) apareceu também, trazendo a voz e o violão gaúcho de Vítor Ramil, junto a eles veio também o escritor Eduardo Loureiro, e tudo se conformou da melhor forma possível madrugada adentro.


Tudo ali no entorno do fogão à lenha. Que tinha como principal atração, na trempe, um caldeirão de barro com feijão-verde com muito queijo de coalho. Esse seria também o cardápio para o tal almoço de véspera da eleição; mas acabou virando baião, porque ao ouvir o convite nem pensei duas vezes, topei e disse fazer questão de preparar uns peixes. E no Ceará, peixe combina com baião.


No caminho escolhi cinco peixes bem-fornidos. E na casa de Almir, junto ao fogão a lenha, fizemos e servimos ao molho de gengibre e alcaparras os tucunarés com baião-de-dois.


O resultado da eleição do dia seguinte só não foi tão bom quanto o almoço, porque teríamos segundo turno para presidente. A próxima votação seria num domingo, dia 29 de outubro, dois dias depois do meu e do aniversário do candidato Lula.


O anfitrião disse fazer questão de comemorar meus quarenta e cinco anos junto ao fogão à lenha, no domingo. No fim das contas, o que eu pensava ter sido ruim seria melhor, pois teríamos comemoração dupla: festejaríamos também a reeleição de Lula, com uma mariscada acompanhada de uma especial salada de chuchu.


Mas infelizmente, a violência absurda, banalizada, assassinou Andréa Havt Bindá, uma semana antes, num assalto estúpido, em um cruzamento de duas avenidas de Fortaleza. O silêncio de reverência tomou conta de todos que a amam. Silentes ficamos, tal como lhe era habitual em sua enorme generosidade de cumprir a parte fundamental do diálogo: ouvir. Ouvir para entender e respeitar: atitude essencial à promoção da paz.



Kelsen Bravos

segunda-feira, 7 de maio de 2007

Esperança verde-marinho

Ai Fortaleza, te digo agora como poeta, só suspirando!
... eu acredito em você, perdoe o tratamento.
Se não acreditasse, sumiria daqui como animal que foge sem dar a mínima...
Antônio Girão Barroso




Se a elite capitalista torna São Paulo um pasticho de Nova Iorque, a de Fortaleza tenta fazê-la uma caricatura de Miami. O que me leva a essa afirmação? Uma seqüência histórica de fatos que em nome da “modernização” dos costumes impinge uma ideologia predadora em que prevalecem os escrúpulos plutocratas, ou seja: “se o fim é o lucro não importam os meios, principalmente se o lucro é nosso”.

Dessa forma, nesse jogo sem lei, ganha quem deixa de lado valores de responsabilidade social e envereda pela seara do querer levar vantagem em tudo e de qualquer jeito, do quanto mais tem mais quer. Daí surgem os novos ricos em todas as áreas, que se somam aos herdeiros de latifúndios, indústrias, financeiras e da classe política que a eles se locupletam. Para afirmar sua força e obter prestígio, o vencedor desse jogo quase sem regras tem de mostrar o quanto pode comprar e ter, é a regra do vale pelo que tem. Isso gera um exibicionismo consumista de futilidades. Tudo que é efêmero vira necessário. Um mundo frívolo se instaura. Em seus carros importados, os filhos do fútil exibem sua ideologia: "Não sou o dono do mundo; mas sou filho do dono!".

Contagiam até a sagrada área da educação, primeiro sucateando escolas e universidades promotoras de estudos consistentes e em seu lugar instituem cursos de diplomação rápida muitos deles com base em literatura de auto-ajuda; esta, uma verdadeira liturgia da banalidade. À propósito de liturgia, não é à toa que surgiu nesse Brasil uma tal “empresa” Universal em nome do reino de Deus.

Esse processo predatório é bem antigo. A invasão ocidental gerou aqui o reino da aparência. Um exemplo simples disso são as roupas de lá que nunca deixaram de ser usadas aqui; apesar do forte calor tropical. Pura exibição. Como vemos, quase nada mudou até hoje.

Os efeitos de tal cultura sobre Fortaleza são desoladores. Os exemplos são inúmeros. Vou me ater apenas a um cenário que encanta ou fere a todos que chegam por aqui, o litoral, a beira-mar – das velas do Mucuripe ao pôr-do-sol da ponte velha que ainda não caiu.

Há menos de cinqüenta anos, o litoral de Fortaleza era povoado de pescadores e suas jangadas ocupavam não só a enseada do Mucuripe. As embarcações fundeavam ao longo da beira-mar no sentido oeste até a praia Formosa, que não tem esse nome à toa.

Na areia, era comum se ver varais com as redes de pesca estendidas nas quais os jangadeiros ou faziam reparos com suas agulhas de espinha de peixe ou estavam mesmo era confeccionando um novo arrastão. Prontas, eram dali mesmo testadas. Lançadas ao mar, ao serem puxadas vinham carregadas de peixes.

Hoje não mais se vê isso, senão na enseada do Mucuripe, onde há minguados barcos, quase nenhum peixe e pouquíssimos jangadeiros. Para onde foram os outros? Para a favela, pois a indústria pesqueira tomou seus lugares. E nada lhes deu em troca além de desemprego e fome. É a força da grana destruindo coisas belas.

Quando a elite descobriu o banho de mar, de repente o cenário da praia foi-se transformando, algumas melhorias ocorreram: calçadões, barracas, a urbanização enfim. Era a força da grana erguendo coisas belas.

A brisa do mar, o sol-posto, o céu estrelado ou as noites de plenilúnio e a aurora, espargindo luz no verde marinho e esperança nos corações cansados, se fundiam num canto de sereia aos boêmios da cidade seduzindo-os para os encontros sem-fim.

Entendamos por boêmios aqueles que são contestadores, têm o afã da liberdade, a emoção não lhes cabe em si, estão sempre - por mais que contidos - a transbordar de tristeza, de alegria, de inconformismo. Idealistas, por isso desconcertados do padrão.

O lugar da boêmia é onde o boêmio está. Costumo dizer que boemia é epifania que se constitui na gente. Ela está, portanto, em todos lugares e em lugar nenhum. Mas um canto de Fortaleza ficou marcado como reduto dessa gente que por não caber em si reverbera arte e contestação em forma de poesia, música, pintura, teatro, manifestos, política, enfim, na melhor acepção da palavra. O Estoril, a rua dos Tabajaras e seu entorno são esse lugar.

O Estoril passou a ser um belo restaurante que promove festivais gastronômicos de lagostas e camarões e reduto de encontro entre turistas e acompanhantes. Um lugar sem arte, onde quem o freqüenta testemunha, como quase todos em seu entorno, o prostiturismo que empesta a orla de Fortaleza. Conseqüências da lei plutocrata do “se o fim é o lucro não importam os meios, principalmente se o lucro é nosso”. Hoje o Estoril está fechado, abandonado pelos gestores da cidade; mas os “turistas” e as acompanhantes continuam por lá.

Tento lembrar de quando minha Fortaleza perdeu a delicadeza e a memória me fez ir bem mais longe do ano em que nasci, fui de carona na voz do texto do poeta Antônio Girão Barroso, numa crônica sobre Fortaleza, em que ele, estranhando o crescimento da cidade, pontua perguntando a ela: “Fortaleza, você está grávida, meu bem?”

 Daquele tempo até hoje, é óbvio, a Aldeia cresceu. Que mal há nisso?! Até os filhos crescem!!!. Não há, portanto, mal algum, certo? Errado. Ela cresceu, como estava a comentar, sempre totalmente à revelia dos que a amavam/amam e que nunca foram contra o seu progresso. Os poetas sempre ficamos ali, alijados, do progresso da cidade imposto pelo (mau)gosto consumista de uma elite fútil.
Antes de o Estoril deixar de ser um portal para boemia, havia o Cirandinha e, bem depois dos dois, o Cais, que se tornou assim uma espécie de tábua de salvação para náufragos. Tudo foi engolido, até ele, pela sanha do lucro e por causa de nossa incompetência de defender a delicadeza.

O fato mais triste é que agora estamos dispersos, e por mais que inventemos cais, sinto que não teremos mais esses ancoradouros; por outro lado tento me apegar numa esperança verde-marinho pelo fato de que ninguém mais pode tirar esses lugares de nós, nem o meu de mim e nem o de cada um de si; entretanto, sei, o ruim é que "tiraram" o Cais de todo mundo. E nos dispersamos.

"Expulsos” como os jangadeiros, deixamos livres os espaços para a transformação grotesca de Fortaleza numa Miami dos trópicos. Com essa finalidade é que os vendilhões tentam cada vez mais transformá-la para nós numa porca velha parida, ou seja, uma mãe que devora os próprios filhos.
(Essa comparação, o Lira Neto, ao som de Vinícius, numa libação vespertina lá no Cais, foi quem me disse que lhe disse Antônio José Forte, um pianista sem igual, que o mercado local e a cidade ignoram. “Fortaleza é uma porca velha”, disse-lhe por isso o músico boêmio.)
Essa realidade não é privilégio de Fortaleza, é brasileira. O que então apaixonados pelo tempo da delicadeza podemos fazer para mudar essa história?

Cansado de esperar, arregacei as mangas e me juntei a outros sonhadores de pés no chão, e depois de uma eleição histórica elegemos uma administração municipal comprometida com os destinos de Fortaleza, a fim de cercar a tal porca velha, para, em breve, dela nos livrarmos. E ao fazermos isso salvarmos nossa cidade-amante, que para muitos – enganados que estão pelas palavras do poeta Paula Ney – é loura e desposada do Sol; mas de fato é mestiça e solteira e "quase" livre, descendente de Iracema, tão linda quanto ela.

Uma bela mulher de quem já ameacei ficar de mal – como fez Dorival Caymmi com a morena Marina –, quando ela, a minha então ingênua Iracema, influenciada pelo meio fútil, quis se oxigenar para ficar loura e seduzir a quem vive atentando contra sua beleza natural.
Os tempos, entretanto, são outros, pois a mestiça está consciente de que ser falsa loura pode torná-la de todo feia como quase feio ficou-lhe o rosto depois da operação plástica que fizeram na beira-mar, calçamentaram ali, aterraram aqui, edificaram acolá, no sentido de a quererem cada vez Miami. E a nós, cada vez alhures!!! Como muitos que já daqui se foram dizendo que para nunca mais voltar. Particulamente espero que a saudade do verde marinho nessa gente que partiu se transforme em esperança sabiá de que nos fala Tom Jobim.
Kelsen Bravos