terça-feira, 16 de outubro de 2007

Em preto e branco

Quem nunca cometeu um preconceito que atire a primeira pedra. Os piores deles são os que se cometem por, digamos, tradição, por costume. Estão de tal maneira introjetados no inconsciente coletivo que pouco são identificados; o que torna seus efeitos danosos, por vários motivos. O primeiro deles pela dificuldade de explicá-los e, portanto, combatê-los. A vítima deles ao questioná-los, na maioria das vezes, é ridicularizada acusada de estar exagerando na sua crítica (ou na sua autodefesa), dizem que ela está vendo cabelo em casca de ovo. Quem há de perceber preconceito numa expressão comum entre prestadores de serviço como “trabalho de branco”?

Outro dia deixei meu carro numa oficina e o gerente na minha frente recomendava ao mecânico, um negro, esmero especial: “Não se preocupe só faço trabalho de branco”, respondeu.

Quase vou embora, pois nessa expressão, em tal contexto, "tudo" contra a raça negra está presente: seu trabalho não presta, negro é preguiçoso, desleixado, incompetente, enfim tudo de ruim. Quem construiu essa imagem? Ah foram bem os donos de escravos e afins que os viam fazer trabalhos (escravos) sem a menor vontade, daí afirmarem que negro é indolente, só trabalha, a muito custo, sob o lanho da chibata. Isso é mais do que preconceito e merece uma reflexão.

Preconceito existe e de todas as formas, os positivos (se é que se pode dizer assim) e os negativos. Como exemplo dos primeiros, temos várias expressões: “os ingleses são pontuais” é uma delas, bem como dizer que “os brasileiros são criativos”. Um perigo, ambas, pois nem todos ingleses são pontuais e nem todos os brasileiros são criativos, nesta ainda há uma apologia ao energúmeno “jeitinho brasileiro”. Na outra uma supremacia de raça. Supremacia esta que os britânicos fazem questão de propalar de todas as formas até com as mais eufêmicas, como num registro que encontrei na Enciclopédia Barsa, que diz que hoje na Tasmânia os habitantes são todos de origem britânica, pois os nativos “extinguiram-se em luta contra os ingleses”. Coitados dos nativos que se suicidaram ao se defender e desafiar o império geno e etnocida.

Exemplo de preconceito negativo são expressões como “programa de índio” para definir um lazer desagradável. Ora bolas o que é que índio tem a ver com o mau gosto ou a desventura alheia? Parece brincadeira, mas não é, pois essa associação acaba por criar uma rejeição étnica que pode levar alguém ­– num país propenso a querer dar um jeitinho em tudo – a se vingar dos índios tocando fogo, por exemplo, em um pataxó. (Pura ficção, não é mesmo?)

A linguagem reflete mesmo a identidade, revela sim de forma surpreendente como pensa e age um povo. E tradicionalmente, a começar na linguagem, a cultura branco-ocidental e a de seus herdeiros coloniais revelam-se preconceituosas. Quanto a isso vejamos o excelente trabalho do professor doutor José Lemos Monteiro sobre o preconceito na literatura, em que afirma: “O brasileiro denuncia em suas formas de manifestação linguística um sentimento de desvalorização ou até de aversão ao negro e, de modo oposto, uma atitude de apreço e respeito pelo branco”. E continua: “basta consultar o Dicionário Aurélio para se comprovar a diversidade de conotações atribuídas aos lexemas 'preto' ou 'negro' (Sujo, encardido) ou 'branco' e 'alvo' (Puro, inocente, cândido)".*

Daí, Lemos investiga cem obras literárias desde a formação do Brasil até os nossos dias extraindo 750 exemplos em que os escritores utilizam “preto” e “negro” de forma depreciativa, ao contrário de branco e alvo, empregados com valores positivos. E destaca surpreso: “É curioso que, até mesmo na poesia de Castro Alves, que tanto lutou em favor da libertação dos escravos, essas conotações se fazem presentes, como prova de que se encontram sedimentadas no inconsciente coletivo de nosso povo”.
(Não posso deixar de citar um esquecimento de Lemos em relação a Monteiro Lobato, que tratava, via boneca Emília, a personagem Tia Anastácia de "negra beiçuda".)

As conotações para negro e preto, 90% delas, evidenciam: “depreciação, menosprezo, discriminação; morte, tragédia, desgraça, sinistros; desgosto, amargura, solidão; tristeza, tédio, melancolia; maus pressentimentos, preocupação; medo, susto, terror; azar, agouro, fatalidade; inveja, despeito, ressentimento; destruição, estragos, manchas; crime, maldade, prisão; deslealdade, ingratidão; feitiçaria, satanismo, bruxaria; pedantismo, boçalidade; hediondez, feiúra, monstruosidade; miséria, humilhação; nojo, náusea, imundície, podridão, lixo; depravação, promiscuidade, lascívia, pecado, vícios”.*

Se a linguagem é um espelho da sociedade, quem nasce com a tez negra ou dela é descendente, bem cedo convive com essas conotações em maior ou menor grau. Expressadas das mais diversas formas, desde o desdém inconsciente das professoras na pré-escola, a desatenção dos garçons, até o menosprezo da competência profissional, como a do gerente em relação ao mecânico do início deste texto e a do próprio mecânico que, para se autoafirmar, comparou seu trabalho ao de branco.

Dada a sutileza dessa questão, depois de uma longa tolerância a esses preconceitos, a reação das vítimas pode eclodir de forma violenta, expositiva, quase inexplicável. O que aparentemente lhe tira a razão; mas se formos encarar esse fato de forma sensata, concluiremos que não compreender a reação da vítima é como não querer compreender o grito de quem chegou ao limite de uma implacável tortura chinesa (que é lenta, contínua e interminável).

Sem receio de generalizar, pode-se afirmar que toda sociedade é preconceituosa; mas o que difere uma das outras é a forma como trata o preconceito. Daí casos de ofensas com expressões racistas, devam ser punidos em todo o mundo de forma exemplar, a fim de começarmos a dar um basta nesse desrespeito a pessoa humana.

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** Fonte: MONTEIRO, José Lemos. O branco no preto: as negras expressões de racismo na Literatura Brasileira. Matraga: Revista do Programa de Pós-graduação em Letras. Rio de Janeiro, UERJ, 9 (14): 141-62, 2002. 

Um comentário:

  1. É verdade. O seu texto revela a crueldade e a intolerância nazista presente em todas as culturas.

    Uma pergunta

    E os judeus que se segregam tanto, não são preconceituosos?

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