quinta-feira, 7 de setembro de 2017

A vida não é novela, é a vida, é a vida, é a vida... - Clauton Monteiro

Alguém já disse, em certo momento de lucidez, que um cartório de delegacia é a caixa de ressonância da sociedade. A história que segue demonstra o quão misteriosa é a maternidade.

O homem almofada - pastel sobre cartão de Paula Rego 

Certa manhã do longínquo ano de 2001, no famoso e grande Bom Jardim (por alguns chamado de Good Garden para glamourizar um dos bairros mais pobres da Capital Alencarina), adentra o 32º Distrito Policial uma senhora, com alguns hematomas pelo corpo. Sua frágil aparência induz qualquer um a lhe estimar 60 anos de idade.

Ao verificar os documentos apresentados por Maria das Dores (chamemos assim a nossa personagem de hoje), o escrivão, com espanto incomum para quem lida com árdua e cotidiana tarefa de ouvir os reclamos da sociedade, constata que aquela mulher agredida tem pouco mais de 30 anos. O relato dela foi dramático:

- Doutor, me ajude! Meu filho me agrediu, tomou meu dinheiro de diarista e foi comprar drogas.

Sob a égide do Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8069/1990, Roberto Chibatinha faz que lhe determina a lei:

- A senhora tem de ir ao IML fazer exame de corpo de delito. Tome a guia para o exame. Depois vá para a Delegacia da Criança e do Adolescente - DCA, é lá que tem de resolver o seu caso. O seu filho é de menor, estou encaminhando tudo para lá. - disse, resignando-se com as amarras lei.

***

Sem muita surpresa, Roberto Chibatinha vê Maria das Dores retornar uma semana depois, agora aos prantos:

- Doutor, pelo amor de Deus, dê um jeito no meu filho! Ao chegar em casa, ontem à noite, depois do meu trabalho de diarista, não encontrei o botijão de gás, meu filho vendeu para o traficante de drogas, eu quis saber quem era, ele me bateu e eu não sei quem vende drogas para meu filho...

Sem mais o quê, perguntou mais uma vez:

- A senhora foi ao IML fazer o exame?

(Afinal é o laudo pericial que comprova a materialidade do crime de lesão corporal. Reflete para si mesmo o escrivão.)

- A senhora foi à DCA?

Respostas negativas para ambas as perguntas.

***

Na terceira ida ao 32° Distrito Policial, a infeliz Maria das Dores apresenta um dos braços quebrados, várias escoriações pelo corpo e um relato assustador:

- Doutor, meu filho estava drogado, com o demônio no corpo, quebrou meu braço, me bateu e levou o restante do dinheiro, me ajude...

Sob a égide do Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8069/1990, o resignado Roberto Chibatinha faz o que lhe determina a lei:

- A senhora tem de ir ao IML fazer exame de corpo de delito. Tome a guia para o exame. Depois vá para a Delegacia da Criança e do Adolescente - DCA, é lá que tem de resolver o seu caso. O seu filho é de menor, estou encaminhando tudo para lá. - disse, abrigando-se na burocracia legal.

***

Porque vida não é novela, ao fim de alguns dias, Roberto Chibatinha recebe a determinação para apurar um homicídio. Envolvia um adolescente e sua mãe fora notificada. "Mais uma Maria das Dores", pensou o escrivão, que deveria tomar-lhe o depoimento em audiência prevista para as 10 horas. Já ia ler os autos, quando os policiais vão até sua sala e um deles diz:

- Macho, sabemos do depoimento marcado para as 10 horas. Mas essa senhora chegou aqui às 7 horas. Não para de chorar. Não dá para você ouvi-la antes?

Mesmo com agenda apertada, manda a senhora entrar... Para sua surpresa, era ela, a Maria das Dores agredida pelo filho três vezes. Aquela pobre senhora era testemunha ocular do homicídio do próprio rebento.

Ao reconhecer o escrivão, aos prantos, Maria das Dores suplica: "DOUTOR, TRAZ MEU FILHO DE VOLTA!".

Ante aquele pedido, atônito, quase sem chão, impotente, Chibatinha fez o que lhe restava, pediu uma luz ao Deus Pai. E como se repetisse o que lhe falassem ao ouvido, disparou para aquela senhora:

- Maria das Dores, você tem alguma religião? Acredita em Deus?

- Sim, doutor, sou evangélica. Sigo a lei de Deus. - respondeu aos prantos.

Roberto repetiu para ela o que jura ter ouvido de uma voz misteriosa:

- Peça conformação, pois Deus sabe o que faz. Essa mesma dor que a senhora está sentindo agora, dona Maria das Dores, imagine quantas mães poderiam sentir por causa de seu filho, pois, saiba, seu filho já é suspeito de ter matado três pessoas.

Fez-se um silêncio. Maria das Dores parou imediatamente de chorar. Depois disse:

- É mesmo, doutor, o senhor tem razão. Deus é quem sabe a hora de levar seus filhos, me dê um copo com água...

Em seguida, bastante serena, falou com riqueza de detalhes como se dera o homicídio de seu miserável filho.

***

Roberto Chibatinha assegura que esse fato foi o divisor de águas em sua profissão, pois a partir dele viu que seria impossível sentir ou compartilhar da dimensão da dor de qualquer vítima, que os mistérios da maternidade só a Deus pertence, que vida não é novela, é a vida, é a vida, é a vida... 

________________
Clauton Monteiro - escreve ocasionalmente no Evoé! Em suas crônicas, predominam as histórias do anti-herói Chibatinha, um controverso filósofo e poeta, cujo alcance permeia as circunstâncias do futebol, das rodas boêmias, dos botequins, parques e cadeias.

2 comentários:

  1. Roberto Chibatinha parece ser um daqueles anti-heróis que apareciam nos antigos livros de cowboy que eu lia quando adolescente, ao mesmo tempo que relembra os personagens hilários de Nelson Rodrigues, pois conseguiu transformar com maestria uma catástrofe em um capítulo de "A vida como ela é". Para terminar ainda arremata sua narrativa relembrando a poesia de Gonzaguinha quando cita versos do mesmo: É a vida, é a vida e é bonita...Saudações ao nosso novo articulista que já chega mostrando ao que veio. Túlio Monteiro.

    ResponderExcluir
  2. Não diria como ela é, mas como se apresenta....
    Afinal .. quem já esteve num cartório de uma delegacia.. tem uma ideia .. principalmente quando o investigado é um estelionatário....Clauton Rocha

    ResponderExcluir