quarta-feira, 12 de julho de 2017

Madeleines? - Chico Araujo

Na obra Em busca do tempo perdido, escrito memorialístico desenvolvido em sete volumes, Marcel Proust divulgou para os leitores de todo o mundo as madeleines francesas. As madeleines são, em verdade, bolinhos franceses originalmente feitos em formato de conchas marítimas, a partir da mistura de farinha de trigo, açúcar, manteiga, ovos, raspas de cascas de limão e fermento em pó.

No caminho de Swann, primeiro volume da série dos sete romances memorialísticos, foi o livro no qual Marcel Proust revelou, por meio de seu narrador-personagem, a fonte de inspiração para tão portento escrito literário: as madeleines. Nele, descreve o narrador como a degustação da iguaria em casa de sua mãe acendeu nele a memória de acontecimentos relevantes em sua existência; tão importantes que os levaram à escrita de Em busca do tempo perdido.

É em No caminho de Swann, portanto, que se narra uma experiência intrigante de um personagem que entra em processo de despertar de sua memória a partir do instante em que se delicia com o bolinho caseiro materno. O momento é simples e intenso: o personagem-narrador põe na boca um pouco do biscoito e de chá e, ao sentir o sabor dessa mistura, entra em intenso processo de rememoração de experiências do seu passado. O personagem-narrador deixa claro que o “gatilho” a desfechar sua memória foi o consumo do chá com a madeleine.

Por mecanismo metafórico generalizante, pode-se aceitar que um mecanismo involuntário despertador de memória – fazendo com que ela traga, para o presente, lembranças adormecidas no tempo – seja uma madeleine. Especificamente em Proust, as reminiscências foram acordadas pelo processo sinestésico associativo do sabor do biscoito e do chá com o aroma de ambos – paladar e olfato se entrelaçando. Para você, o que seria uma “sua” madeleine?

Para mim, bem recentemente, uma madeleine a mim se chegou por meio eletrônico, exatamente em mensagem eletrônica enviada por um amigo me avisando que outro, a quem não vejo por trinta anos, estava a minha procura. George Farias! Músico cearense migrado para Roraima buscava contato comigo. Quase de imediato esse contato se fez. E foi lendo o e-mail por ele primeiramente enviado que a memória de pronto se pôs em rebuliço. Na conversa realizada logo depois, o alvoroço se fez mais intenso.

George Farias foi um dos componentes do Grupo Bauê, formado por quatro jovens interessadíssimos em compor músicas e interpretá-las lá pelo começo dos anos 1980. Conheci-os por volta de 1983, por intermédio da atriz cearense Neidinha Castelo Branco. Naquela época, eu já estava com sólida parceria musical com Matteus Viana, eu letrista, ele melodista e harmonizador das canções que fazíamos.

30 anos... É muito tempo transcorrido na vida...

Uma das primeiras visões que me acorreram em ler o e-mail de George foi um momento especialíssimo para nós dois: subimos ao palco do nosso maravilhoso Teatro José de Alencar para interpretarmos, eu na voz, George no violão, a música “Nos bailes da vida”, de Fernando Brant e Milton Nascimento. Nossa participação se inseriu no evento “A Noite das Estrelas”, que tinha por motivação maior premiar atores, atrizes, diretores e peças de teatro no ano de 1983. Os idealizadores daquele acontecimento cultural: Neidinha Castelo Branco e o teatrólogo Maurício (seu sobrenome a memória não conseguiu trazer para cá).

Talvez seja desnecessário dizer o quanto aquela noite foi especial; mas “A Noite das Estrelas” propiciou a George e a mim uma oportunidade rara: subir a um grande palco de teatro pela primeira vez! É isso mesmo. George e eu não tínhamos experiência em palco de teatro e “debutamos” simplesmente no maior teatro de nosso estado: o José de Alencar. Lembro-me, sem equívoco, de que optei por estar todo de branco naquela apresentação artística; míope que sou, naquela época usava óculos de grau em armação arredondada, de metal, inspirado em certo músico de Liverpool.

Essa busca de contato de George Farias me trouxe mais lembranças. Por exemplo, os ensaios em preparação para o show musical Nascer do Canto, realizado no Teatro Carlos Câmara, muito conhecido como Teatro da Emcetur. Nascer do Canto foi evento de apresentação para o público de músicas autorais minhas em parceria com Matteus Viana. O Grupo Bauê aceitou participar daquele momento e foi, de fato, quem deu todo o suporte musical básico para que tudo pudesse acontecer. Nunca me esqueci de George tocando violão de "forma trocada", por ser canhoto, e portar violão para destros, nem de Washington, outro músico do grupo, tocando escaleta, na época um instrumento desconhecido por mim, instrumento que deu uma sonoridade especial nos arranjos de algumas músicas.

Nascer do Canto tinha amplos significados. A memória despertada me traz alguns: 1. o nascimento, digamos, oficial, do canto de Matteus Viana e Chico Sérgio (era assim que assinava na época); 2. o nascimento de nossas músicas de um lugar, que seria o Ceará, em visão macro, e Fortaleza, via Teatro Carlos Câmara, em visão micro; 3. o surgimento, para a sociedade, de um canto em parceria que se inseria também como ato contestador da política vigente, uma vez que ainda estávamos no período da Ditadura Militar e composições nossas objetavam o regime.

Para a realização daquela apresentação musical naquele ano de 1984, precisamos ter a liberação de todas as músicas pela Polícia Federal. E, disseram-nos – nunca confirmamos o fato –, da presença de policial daquele departamento no recinto. E é certo, sem necessidade.

30 anos... É muito tempo transcorrido na vida... É muito guardado na nossa memória... Que venham sempre as madeleines...

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Chico Araujo publica todas as quartas-feiras no Evoé! Madeleines foi escrito em 5 de julho de 2017. Leia mais Chico Araujo em Vida, Minha Vida...

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