sábado, 31 de outubro de 2015

Acorda, Subúrbio!

Cidade pressupõe organização. Imagine-se São Paulo sem filas. Quem chega a capital paulista se surpreende com o frenético vai e vem das pessoas. Aparentam um caminhar para não sei onde.
Para quem vê essa multidão, “boiada caminhando a esmo”, pela primeira vez, sobretudo chegado de uma cidade como a minha, em que tudo é logo ali, em que há uma brisa marinha que nos faz experimentar um refrigério sem igual a pleno sol equatorial de meio-dia, em que as pessoas se cumprimentam e se sorriem, se ajudam, portanto, se olham; para quem como eu chega a uma cidade demograficamente superior, bem superior, à de origem, São Paulo aparenta um tresloucado formigueiro.

A noção do que é gente se dilui. As pessoas têm os olhos para bem longe, não olham para o lado, andam apressadas, correm. A cidade impera. A organização dita tudo. Ou as pessoas internalizam-na ou vão ficar à toa girando feito piorra.

Mas isso é só o que aparenta ser, nada é caótico em São Paulo, pelo contrário, as pessoas têm destino certo, uma fila, em hora precisa. Há, para tudo, um tempo determinado. Sem isso seria o caos.
É bom estar em São Paulo – de passagem – poder observá-la. Na maioria dos demais cantos do mundo, é a gente, o jeito de ser do povo que sobressai depois do vislumbre da paisagem. Em São Paulo a observação primeira é da cidade e, quando se procura a gente, sente-se um mal-estar: as pessoas nem se olham.

Gosto de São Paulo e de observar as pessoas. Afora elas, pouco de natural tem São Paulo, nem a paisagem. Tirante a gente de lá, São Paulo é um projeto de Nova York. Não fossem as pessoas que ainda não se submeteram por total à organização, São Paulo não passaria de um gigante formigueiro.
Certa feita, ao chegar em Congonhas, antes de o avião parar por completo, um paulista que voltava das férias em Fortaleza com a família, feliz, mudou o tom eufórico com que presenteara os passageiros durante toda a viagem e, reflexivo, quase em murmúrio afirmou que podiam falar o que fosse, meu; podia, meu, ser o que fosse; mas ele adorava São Paulo, que já estava com saudade do ritmo de São Paulo. Era a cidade dele, era lá onde havia nascido... e cantarolou: “vambora, vambora! Tá na hora, vambora!...”

O jeito de ele falar, o “podia ser o que fosse” ficou renitindo em mim, ele era bem maduro; mas não sabia o que era São Paulo. Não dá nem para paulista definir. São Paulo tem tudo para favorecer o encontro das pessoas, seu principal meio de transporte coletivo, o metrô, por exemplo, dispensa janelas, resta então olhar para os lados; entretanto dentro dele as pessoas não se olham, não se cumprimentam, não se sorriem.

Encontrei um colega paulista no metrô, íamos para uma mesma reunião. De início eu o vi, ele não me viu, entramos e sentei a sua frente e o olhava, demorou um pouco para que ele saísse do aparente transe citadino e me visse. Ao me ver disse que estranhara estar sendo olhado, ficara preocupado, depois explicou-me que as pessoas lá não costumam fazer isso: olharem-se de forma tão explícita. Ali, no metrô, ele internalizava a cidade, estava quase não sendo gente. Por insistência minha, ele se iluminou de humanidade. Esse fato me disse que essa Nova York provinciana tem chance.

Por isso o melhor de São Paulo é descobrir nela o que de província ainda lhe resta: feira livre nos bairros; o botequim do Seu Zé – aquele velho senhor, guardião das boas lembranças de uma cidade feliz; os subúrbios sem miséria. Neste sentido sim, São Paulo é grande e autêntica; no outro, não passa de uma pretensa Nova York, um pasticho de megalópole capitalista. Esta parece ignorar que na cidade tem passarinhos e não apenas pombos paulistas.

Foi com o espírito de resgatar uma cidade em que as pessoas possam conviver se olhando que – numa madrugada, em plena avenida Paulista, a pé, no meio daquela “rua”, cheio de cerveja e de razão – surpreendi o Lira Neto, a Adriana Negreiros e o meu amor Lidiane Moura, ao esbravejar: Acorda, Subúrbio!


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