segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Para Jade e Sade

Aqui transcrevo, à sua revelia, crônica de Vessillo Monte. Um ser dotado de profundo conhecimento, o melhor leitor que eu conheço. Ninguém humaniza tanto a leitura quanto ele. Meu outro amigo-irmão Lira Neto escreveu uma crônica sobre o Vessillo que publiquei aqui também (Eu conheço um gigante). Leia o tanto da boniteza do Vessillo que, feito todo poeta, tudo que escreve é para sempre. Tem sangue eterno essa asa ritmada:


Para Jade e Sade


Vessillo Monte
Andando, de ânimo leve e descansado passo, vários quarteirões em busca de um bar - casas de cada lado, jardins em flor - eis-me na esquina dentre as tantas de Fortaleza e, súbito, deparo-me, aos meus pés, encolhido à luz de um poste, um cãozinho triste, que interrompe o seu sono, levanta a cabeça e fita-me. É um triste cãozinho doente, com todo o corpo ferido; gastas, as mechas brancas do pêlo; o olhar dorido e profundo, com esse lustro de lágrimas que há nos olhos das pessoas muito idosas. Com grande esforço acaba de levantar-se. Eu não lhe digo nada, não faço nenhum gesto. Envergonha-me haver interrompido o seu sono. Se ele estava feliz ali, eu não devia ter chegado. Já lhe faltavam tantas coisas, que ao menos dormisse em paz. Também os cães devem esquecer, enquanto dormem.

Ele, porém, levantava-se e olhava-me. Levantava-se com a dificuldade dos enfermos muito graves: acomodando as patas da frente, arrastando o resto do corpo, sempre com os olhos em mim, como à espera de uma palavra ou de um gesto. Mas eu não o queria vexar, nem oprimir. Gostaria de cuidar dele: chamar alguém, pedir-lhe que o examinasse, que receitasse, encaminhá-lo a um tratamento... mas tudo é tão difícil, tão difícil. E era preciso que eu continuasse. E ele estava ali, na minha frente, indefeso, como que envergonhado de se achar tão sujo e doente, com o envelhecido olhar numa espécie de súplica.

Até o muito longe de minha vida, guardarei seu olhar. Sentirei esta humana infelicidade de nem sempre poder socorrer, neste complexo mundo dos homens. Então, o triste cãozinho reuniu todas as suas forças, atravessou a rua, sem nenhuma dúvida sobre seu destino e começou a descer a avenida em frente à igreja com seus santos enclausurados em gesso, que nada sabem dos tristes cães, dos bêbados e dos poetas. Passou pela praça, caminhou para o lado esquerdo e... desapareceu.

Bem velhinho, ele ia indo como um andrajoso, esfarrapado, de cabeça baixa, sem firmeza. Era, no entanto, uma forma de vida. Uma criatura desse mundo de inumeráveis criaturas. Esteve ao meu alcance; talvez tivesse fome e sede: e eu nada fiz por ele, amei-o apenas, com uma capacidade inútil, sem qualquer expressão concreta. Deixei-o partir, assim, humilhado e tão digno, no entanto: como alguém que respeitosamente pede desculpas de ter ocupado um lugar que não era seu. Depois pensei que nós todos somos, um dia, esse cãozinho triste, à sombra de um poste. E há a indiferença e há a avenida que descemos e há a dignidade final da solidão.

Vessillo Monte

Em algum lugar da Avenida 13 de Maio, 2006.

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