Aírton Monte (foto de Lia de Paula) |
Livrai-me, Senhor, dos que ferem a espontaneidade anárquica
do botequim, querendo impor regras e limites burocráticos aos seus
frequentadores, insistindo em filosofar a sério sobre mulher, futebol e vida
alheia. Pois o botequim é sinônimo de espontaneidade, do imprevisível, do
inusitado, do quando menos se espera é que acontece.
Livrai-me, Senhor, dos que, ao invés de contarem piadas, “causos” e lérias, teimam em discutir política com acirrado fanatismo ideológico.
Livrai-me, Senhor, da presença dos falsos amigos, esses Judas do afeto, esses fariseus do bem-querer.
Livrai-me, Senhor, dos falsos pastores, que falam Teu Santo Nome em vão e cujo rebanho nada mais é do que a salvação da lavoura. Do pastor, é claro. A todos eles, os que enganam e traem a boa fé do semelhante, castigai-os, Senhor, com uma mulher estabanada, que fale mais que o locutor do Jóquei Clube. E, ao mesmo tempo, Senhor, perdoai-me por pedir o sofrimento para meu semelhante.
Livrai-me, Senhor, do imposto de renda, do bolso vazio, do emprego perdido, da firma reconhecida, dos credores inoportunos que tocam a campainha pela madrugada, nos roubando o sono e a esperança.
Livrai-me, Senhor, da fila dos bancos, dos juros do cheque especial e do cartão de crédito, da promissória vencida, do salário atrasado, das saidinhas bancárias, que os bandidos não dão trégua, Senhor.
Por via das dúvidas, Senhor, livrai-me precipuamente das pragas de ex-mulher rancorosa, que são piores do que praga de mãe e atormentam os infelizes pela vida afora.
Dos maus poetas, Senhor, livrai-me urgentemente, que deles a poesia quer distância por uma questão de sobrevivência.
Livrai-me, Senhor, do sexo feito às pressas, num simulacro de paixão.
Livrai-me, Senhor, das pobres e tristes criaturas castas, que odeiam o próprio corpo e seus desejos e para quem Deus tornou-se sinônimo perfeito de mortificação e de martírio, livrai-me, Senhor, para todo o sempre. Fazei com que eles recuperem a alegria de viver.
Livrai-me, Senhor, dos assassinos de árvores, que trucidam o verde cinturão de Fortaleza e a transformam num deserto de cimento armado por onde os hunos contemporâneos passeiam as suas patas.
Livrai-me, Senhor, dos políticos safados, dos padres de passarela, dos juízes marreteiros, das baratas, das traças, dos cupins que infernizam o existir daqueles que amam os livros.
Livrai-me, Senhor, das desilusões paternas e da ideia besta de que os filhos nunca crescem. Das mulheres que não sabem cozinhar, nem fazer cafuné e caldo de caridade, Livrai-me, Senhor, pelo amor de Deus.
Livrai-me, Senhor, de todos os relógios que me escravizam ao tempo.
E se não for pedir muito, Senhor, livrai-me jamais dessa
capacidade infinita de sonhar e que me faz sublimemente humano, à Vossa imagem
e semelhança.
(Trecho da crônica Em feitio de oração, publicada no OPOVO)
Linda homenagem, Kelsen. Retirarei alguns trechos para o twitter do Armazém da Cultura.Abraços
ResponderExcluirSalve Airton Monte, grande amigo!
ResponderExcluirlindo lindo lindo! Evoé!
ResponderExcluirvaleu, grande kelsen. bela homenagem.
ResponderExcluirEsse é o nego Airton. 1 beijo, meu irmão.
ResponderExcluirPsoinha
Airton Monte com sua sapiência , nos brinda com um texto verdadeiro e autêntico... é isso... legal Kelsen Bravos nos avivar a memória com mais uma belíssima obra do genial Airton Monte..faltou só a referência nesse texto ao bucólico e vetusto Solar dos Monte no não menos boêmio bairro Benfica...que tanto o Dr. Airton alardeava...Clauton Rocha
ResponderExcluirUm salve à memória viva de Airton Monte!!
ResponderExcluirChico Fabio Leão