segunda-feira, 17 de julho de 2017

SOBRE A NARRATIVA E SUA DIMENSÃO UTILITÁRIA - Túlio Monteiro

Para ter valor uma narrativa deve encerrar em si alguma dimensão utilitária. A produção de uma obra literária que não possua esta característica estará deixando de ocupar importantes papéis no que diz respeito às suas inúmeras funções sociais: o de informar e esclarecer de forma crítica e abalizada o seu público leitor, por exemplo. O bom escritor deve possuir um profundo senso prático no que diz respeito à sua produção intelectual, buscando sempre ultrapassar os limites do simples narrar, para com isso inserir o produto de sua criação no restrito campo das obras comprometidas com o engrandecimento da humanidade. Um bom exemplo deste tipo de escritor é o do russo Nikolai Leskov (Orjol,1831 – S.Petersburgo,1895). Simpático aos interesses dos camponeses e das ideias de Tolstoi e Dostoievski, combateu ferrenhamente as burocracias eclesiástica e governamentais de seu País. Confirmando a máxima de que viajar é adquirir conhecimento e experiência narrativa, Leskov, trabalhando como agente russo de uma firma inglesa conheceu quase todo o seu país. O contato com os mais variados tipos de pessoas e níveis sociais enriqueceram, sobremaneira, seu conhecimento de mundo, levando-o a produzir uma literatura comprometida com os ideais igualitários socialistas fundamentados por Karl Marx e Engels no Manifesto Comunista de 1848. Seu primeiro texto impresso: “Por que os livros são caros em Kiev?”, aborda e critica – já na Rússia do século 19 – uma questão extremamente atual no mundo de hoje: a atitude ditatorial das classes dominantes, detentoras do poder econômico e por consequência de todo o processo mecânico de produção impressa, de encarecer o custo final dessa produção com o único intuito de dificultar o acesso das classes menos favorecidas a informações que, se absorvidas por essas massas, culminariam com ameaças reais à sua hegemonia oligárquica. A produção literária de Leskov inclui ainda inúmeros escritos abordando temáticas que versam sobre as péssimas condições da classe operária, dos desempregados, sobre o alcoolismo gerado pela falta de perspectivas e toda uma gama de desigualdades sociais advindas das arbitrariedades do poder czarista de então.

Sobre este teor utilitário e engajado da narrativa literária, Walter Benjamin escreve: “O senso prático é uma das características de muitos narradores natos. Mais tipicamente que em Leskov, encontramos esse atributo em Gotthelf, que dá conselhos de agronomia a seus camponeses, num Nodier, que se preocupa com os perigos da iluminação a gás, e num Hebel, que transmite a seus leitores pequenas informações científicas em seu Schatzkastlein (Caixa de Tesouros). Tudo isso esclarece a natureza da verdadeira narrativa. Ela tem sempre em si, às vezes de forma latente, uma dimensão utilitária. Essa utilidade pode consistir seja num ensinamento moral, seja numa sugestão prática, seja num provérbio ou numa norma de vida – de qualquer maneira, o narrador é um homem que sabe dar conselhos.”[1]

Um aconselhador, por certo. Porém, um aconselhador que gere opiniões visando sempre extrapolar os meros limites da história e da ficção, buscando uma proximidade maior com informações que possam ser úteis não só aos leitores de sua época, mas também às gerações futuras que, porventura, venham a ter acesso aos seus escritos. “A própria questão da narrativa exige tal risco”, comenta o crítico Luís Costa Lima[2]. Limitar sua atuação apenas aos campos da historiografia e/ou da ficção é cercear as inúmeras possibilidades sociais que a literatura pode proporcionar a seus receptores.

Notas:
[1] BENJAMIN, Walter. O Narrador. In: Magia e técnica, arte e política. DF, Brasiliense, 2ª ed.,1986.p200. 
[2] LIMA, Luís Costa. A Aguarrás do Tempo: Estudos Sobre a Narrativa. RJ, Edit. Rocco, 1989.p.16

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Túlio Monteiro - escritor, revisor e crítico literário, publica todas as segundas aqui no Evoé! Leia também Literatura com Túlio Monteiro..

Um comentário:

  1. Que a narrativa não se perca, nem pelos propósitos, muito menos pela forma. Mas na contradição entre o ter e o ser, o vil metal, o material, os recursos financeiros, conseguem sempre influenciar a vida das pessoas. Seja dificultando a divulgação e consequente debate, quer seja censurando mesmo. O que é a história senão um relato de algum literato com as condições que lhes são dadas?... Um abraço primo.

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