segunda-feira, 10 de julho de 2017

ANGÚSTIA EM SÃO BERNARDO - Túlio Monteiro

Desde então procuro descascar fatos, aqui sentado à mesa da sala de jantar, fumando cachimbo e bebendo café, à hora em que os grilos cantam e a folhagem das laranjeiras se tinge de preto.
Paulo Honório, em São Bernardo, de Graciliano Ramos
Estranho só agora ter que voltar à casa de onde tão cedo fui mandado embora por meu pai. Apesar de ter sido arrancado prematuramente do meu mundo de menino, mal completos sete anos, são muitas as lembranças surgidas à mente deste homem já feito. Trinta anos pelo São Pedro.

Vim para enterrá-lo ao lado do túmulo de minha mãe, da qual nada me recordo. Tudo que sei dela a mim chegou através daqueles que me cercavam quando ainda corria solto pelas terras da fazenda São Bernardo: Minha ama, o vaqueiro Marciano e o peão Casimiro Lopes, homem de compleição e intelecto brutos, mas o único que me deu um pouco do carinho de pai que todo menino gosta de ter. Impossível esquecer os momentos nos quais ele me levava a passear em seu cavalo para ver os animais pertencentes ao meu pai – os racionais e irracionais – ou quando papagueava comigo contando-me histórias de onças, entrecortadas por cantigas do sertão.

Eu nasci de sete meses,
Fui criado sem mamar
Bebi leite de cem reses
Na porteira do “currá”

Vim a saber que eu tinha pouco mais de um ano quando ela partiu. Suicídio por envenamento. Não suportava mais o ciúme doentio de meu pai que enxergava traição em cada amigo visitante, cada serviçal ou mesmo nos piados de animais noturnos, segundo ele assovios, sinais convencionados entre os amantes de sua mulher.

Depois que minha mãe Madalena morreu, Paulo Honório passou a oscilar entre a inocência e a culpa de sua esposa. Tornou-se homem ensimesmado, ora trabalhando feito um bruto, ora sentado à mesa da sala de jantar, noite madrugada adentro, deitando no papel reminiscências que um dia desejou tornar livro. Expiação impressa de suas culpas, dúvidas e razões.

(...)

O grito de uma coruja no forro da igreja da fazenda sobressaltou-me. Similar às Madeleines de Proust, aquele piar estridente que tantas vezes ouvi nas noites escuras e solitárias de minha infância, despertou-me do monólogo interior que me açoitava a mente. Caminhei pela casa até chegar à sala de jantar, onde a estante de minha mãe permanece intacta e abarrotada de livros. Obras que vão dos clássicos de Shakespeare e Cervantes à literatura subversiva que tanto a apaixonava e que tantas discussões acaloradas gerou entra ela, o Doutor Magalhães, seu Ribeiro e o Luís Padilha, respectivamente o Juiz da comarca de Viçosa de Alagoas, o Guarda-Livros de meu pai e o ex-próprietário de São Bernardo. Seres cultos que atraiam a ira e o ciúme exacerbado de meu pai, homem de mãos grandes, rosto vermelho e sobrancelhas espessas; àquela época um cabra rude de coração miúdo, lacunas no cérebro e nervos diferentes dos nervos de outros homens.

Correndo os olhos de leitor voraz – herança materna – pelas lombadas dos livros bem arrumados, percebi uma falha organizacional. Entre as obras de Marx, Engels e Prestes um envelope gris destoava. Abri com zelo aquele móvel que, enfim, seria meu, uma vez que meu pai jamais permitiu que daquela casa ele fosse removido. Dele, só Paulo Honório possuía as chaves, apenas a ele cabendo a execução dos necessários serviços de limpeza e manutenção. De homem que detestava as letras, lapidou-se um literato ao longo dos seus muitos anos de solidão.

Dentro do envelope, um punhado de folhas amareladas que encerram quase três décadas do fluxo da consciência de meu pai. Iniciadas sem muito ou nenhum esmero sintático, à medida que os anos de angústia avançavam e a cultura invadia meu pai como a luz de um sol setentrional, sua costura textual se fez mais densa e harmoniosa, prova maior de que a estética – ao contrário do que pregam os cultuadores das velhas e desgastadas torres de marfim – está ao alcance de qualquer mortal.

Todos os acontecimentos ocorridos na vida de meu pai após a partida de minha mãe estavam ali. Os li com avidez. Qual Otelo ou Bentinho, Paulo Honório foi um homem torturado hora pelo remorso, hora pela convicção da infidelidade de sua Desdêmona, de sua Capitu. E eu, o menino magro de cabelos loiros como os da mãe, que se esgoelava em choros contínuos e vivia se esgueirando furtivamente pelos cantos da casa, fui a maior vítima dos fantasmas criados pelo ciúme de Paulo Honório. Fui preterido por ele, mandado embora de meu lar – que a mim não importava ser feliz ou infausto –, para ser criado em um internato. Inferno de Dante aos meus olhos pueris.

Cresci “industrializado”. O tratamento mecânico e despido de afeto que se recebe em um internato deixa marcas indeléveis na mente e na alma. Tornei-me adolescente soturno, depois homem de poucas palavras e nenhum riso, que encontrou nas letras o refúgio ideal, transformando-me no escritor que meu pai nunca foi.

Procurei esquecer São Bernardo e os que comigo habitaram-na. Fingi não ter passado, odiando meu pai a cada dia que me era dado a viver. Endureci e assim vivi por quase trinta anos sem pisar nas terras de Viçosa. Palmeira dos Índios era meu lugar, Alagoas meu porto seguro. Rio de Janeiro, mero local para se conquistar dinheiro e fama.

No entanto, agora sentado à mesa que Paulo Honório usou como refúgio literário em detrimento de suas dores, sinto-me impotente diante de tantas folhas amargas, tantos fatos encobertos pelas cinzas dos anos de solidão que dilaceraram meu pai e eu. Nos afastamos, deixamos de nos falar. Eu cuidando de meus escritos e ele dos dele. Deus, como teríamos sido menos infelizes se tivéssemos nos tornado íntimos, cúmplices na vida e nas letras, pai e filho, simplesmente.

(...)

Todos dormem em São Bernardo.

“Lá fora há uma treva dos diabos, um grande silêncio. Entretanto, o luar entra por uma janela fechada e o nordeste furioso espalha folhas secas no chão”.  Resolvo por escrever. Forma maior e única que conheço para livrar-me dos assombros que me habitam. Quem sabe, não o inicio um novo romance na mesa em que meu pai tantas vezes esteve a acordar lembranças, “em busca de um tempo perdido” que ele nunca conseguiu resgatar. Tentativas de “acabar” com a memória, dissolver as recordações por intermédio dos estranhos hiatos de um sonho angustiado.

Levanto-me e procuro uma vela. Não tenho sono. As lembranças causam um arrepio. Dou luz à vela e sento-me para escrever uma linha, confidenciando-me em voz baixa:

– Estraguei a minha felicidade, estraguei-a estupidamente.

Deixo a pena correr pelo papel ao tracejar frenético de meus dedos. Se ao menos meu pai voltasse...nem sequer tive a amizade de meu pai. Que miséria!

(...)

Todos dormem em São Bernardo.

“E eu vou ficar aqui, às escuras, até não sei que hora, até que, morto de fadiga, encoste a cabeça à mesa e descanse uns minutos.”

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Túlio Monteiro - escritor, revisor e crítico literário, publica todas as segundas aqui no Evoé! Leia também Literatura com Túlio Monteiro.

4 comentários:

  1. Túlio Monteiro, meu querido amigo, seu trabalho literário é simplesmente a expressão de um luminar das letras. Magnífico!
    Andei passeando por São Bernardo... Talvez, tenha encontrado Graciliano... Talvez, tenha conversado com ele sobre você, que sempre escolhe os melhores autores para dar-nos momentos assim, tão apaixonantes. Graciliano e Túlio Monteiro são dois autores brasileiros que me embevecem a alma. Parabéns, caro amigo! Tenho-lhe muito respeito, carinho e admiração.

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    1. Lucineide, minha amiga. Tais comparações me deixam, sinceramente,encabulado.Quem serei eu, um dia, frente a Graciliano Ramos? Mas, vindos de você, certamente sei que são mais do que sinceros. Sinceramente agradecido, seu amigo Túlio Monteiro.

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  2. Amargura, afastamentos, solidão....quanta mistura de sentimentos numa alma atormentada. Agora caro Túlio, vem a lume para este mero leitor uma certeza... quanto tempo desperdiçamos ao seguirmos nossas trajetórias, pois o tempo assim como o vento não voltam... portanto uma ode a felicidade em cada momento, e que possamos retirar desse seu brilhante texto, ensinamentos, para encontrarmos felicidade até nos momentos mais dificeis. Parabéns

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    1. Obrigado, caro Clauton. Esse texto é uma caixa de ressonância para quem leu ou um dia vai ler "São Bernardo", romance memorialista de Graciliano Ramos. O menino loiro que se esgueira pela casa, ninguém mais é que ele mesmo em relembranças das rudezas de seu pai em relação aos ciúmes que sentia por sua mãe. Meu texto apenas tenta completar o que brilhantemente escreveu Graciliano. Grato pelos comentários. Túlio Monteiro.

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