segunda-feira, 3 de julho de 2017

A ÁGUA, O VALE E A MONTANHA - Túlio Monteiro



O único compromisso da Literatura é com a vida. A força da vida
está no sexo. Se você escreve sobre a verdade disso, não se preocupe,
meu velho, com a moral burguesa. Não vale nada.
Moreira Campos

Março. Mês de chuvas, águas que caem do céu para fertilizar, gerar novas vidas vegetais, matalotagens altruístas que manterão vivas incontáveis vidas animais. 

A montanha que há bem pouco agonizava, secando sob o sol abrasador sua pele antes verde, hoje cinza cor de seca, aguarda as águas que certamente virão. Aguarda a montanha, carente de líquidos qual mulher pouco ou nada amada, em desejo ciese de ser fecundada pelo homem maduro ou pueril que um dia há de penetrá-la, lançando-lhe no âmago uterino corpóreo – de pele ou de terra – filhos perpetuadores, genes eternizantes.

!!!!!!!!!!!!!!!!Chuva!!!!!!!!!!!!!!!!

Noite que se vai, sol que se chega e que se põe. Ciclo da vida, círculo que nunca se encerra ou jamais se começa. Poesia incessante que se conjuga no infinitivo verbo eternizar. 

A noite que sobre tudo despenca se abate, despeja-se sem trégua no corpo da montanha que reina. Animais se aninham, aconchegando-se em lares quentes feitos por si. Pássaros diurnos cessam seus cantos, estrelas cadentes deixam de riscar o céu, agora cheio de nuvens prenhes de água, esperma do zênite que fura a crosta da Terra, para semear vida no interior dessa bola azul que o animal-homem ainda teima em insistir ser somente sua.

Madrugada adentro, escorre pelas encostas da montanha o burburinho macio das águas. Percorrem valas, cantos, grotas, mapas tortuosos a indicar-lhes seu porto final. À sua passagem, plantas curvam-se em respeitosas reverências, sabendo serem elas – as águas –, as fontes primeiras de suas existências.

Epicurismo. Silêncio notívago de vaga-lumes que se escondem entre as folhas temendo o frio que se instala. Em seu deslizar convicto, elas descem cada vez mais rápidas pelos caminhos de terra que encontram, prelibando a cada metro percorrido o ato final da saga iniciada no topo da montanha, macho telúrico em franca busca dum coito anunciado pelos céus que cercam o planeta. 

O ângulo de declive diminui.

Antes vertiginosas, as águas abrandam a intensidade de sua descida, delicadamente apossando-se do vale que se tornará mãe de novas vidas, novas fontes de pseudo-eternidade. 

Macho e fêmea fundem-se em um só. Amor da natureza consigo mesma. Milagre da vida que, ao iniciar-se, inicia consigo a própria morte. Os ventos, cupidos alados que são, acobertam gemidos que viajam às estrelas, conspirações maiores do universo.

Gozo...

Quietude no lago que se formou no centro do vale, aos pés da montanha. Na madrugada alta, um luar em plenilúnio enche de prata as gotas de chuva que ficaram presas nas folhas das árvores. Orvalho dos reis, diria um poeta.

Finda-se, por enquanto, o prazer. Dormem agora embalados pelo silêncio de seus corpos, os amantes saciados. Mágico instante em que montanha e vale, macho e fêmea, homem e mulher, invertem gêneros gramaticais.

Arrebol...

O dia que agora nasce será mais um naquelas paragens. Dia de novos prazeres, de novos milagres, novas fertilizações. Igualdade de desejos e sexos. Cumplicidade: circularidade infinita d´um verbo conjugado amor.

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Túlio Monteiro - escritor, revisor e crítico literário, publica todas as segundas aqui no Evoé! Leia também Literatura com Túlio Monteiro.

4 comentários:

  1. Poesia romântica bem articulada, e quem sabe ser o poeta um arquiteto? Afinal desliza com as palavras toda uma estrutura bem ornamentada e cheia de vida. Mas, não, acho que o poeta está mais para um médico cirurgião, com sua precisão cirúrgica a descrever com tamanha eloquência , o milagre que é a vida banhada pelas águas da chuva.

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  2. De um médico para um arquiteto - ambos facebookianos- ficam as palavras de agradecimento a esse meu primo tão cheio de eloquências que deveria pôr-se a escrever também. Aventurar-se em mais essa jornada. Por que não? Túlio Monteiro.

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  3. O tempo assim como o vento, e as águas do mar e das chuvas, passam rápido, amigo primo facebookiano, mas vem a dúvida, onde buscar inspiração para escrever? Estamos rodeados de acontecimentos trágicos.... na política, na Justiça ou seria injustiça? Enfim embora, não queira calar-me, vou pensar em umas crônicas para provocar boas polêmicas... quem sabe....até porque o que seria a verdade senão a negação da mentira... vai depender de quem consegue se iludir ou se enganar...

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  4. Êxtase! a poesia pura...agora sim acertas a mão e o ângulo do declive...
    Zênite
    as estrelas cadentes riscam o céu em festa
    acordastes os pássaros diurnos
    Vai... alcanças enfim o MAR!
    Feliz, amigo. Márcia Matos

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