segunda-feira, 8 de maio de 2017

UM LUGAR LIMPO E BEM ILUMINADO - Túlio Monteiro


O velho sentado na penumbra riscou o pires com o copo.
O garçom jovem foi até ele... mais uma dose!
(Ernest Hemingway – em Well-Lighted Place)

– O que foi, poeta? Está com nojo de mim? – Berrou-me asperamente o poeta Mário Gomes com sua argúcia de sempre.

Sempre de paletó e mangas longas, barba por fazer e livros e mais livros às mãos e sovacos, o poeta que morreu em um ano e foi sepultado no outro, fitou-me com aquele olhar esverdeado de sempre, saindo-se com mais uma de suas ácidas tiradas:

– Pare de me achar sujo e me dê um dinheiro, poeta. Pois se dinheiro trouxesse felicidade você estava morrendo de rir agora e não aqui, no velho Flórida Bar tomando essas cervejas quentes que o Bayma serve a troco de nada. Vamos lá que eu tenho pressa de chegar à Praça do Ferreira para as confabulações de sempre.

Não tinha jeito! Era puxar uma cadeira e ficar por minutos contemplando as sandices absolutamente cruciais do Mário. E olhe, menino, que o homem tinha livros dentro da cabeça, como se cirurgia tivesse feito e costurado lá por dentro coisas de deliciar-se comendo lagartas para excrementar borboletas. Tome conversa jogada fora com o talvez último dos grandes poetas de rua de Fortaleza: o velho Mário Gomes. Isso já no século 21. 

E haja poesia junto com palavrões. Passasse um rabo de saia ele já ia cofiando o bigode e dizendo as paparicagens típicas de um poeta louco de amores desde os tempos em que cursara arte dramática na Universidade federal do Ceará para aprender como se achegar a uma bela mulher. Ficou pelo caminho o curso de ator em detrimento do autor de Lamentos do Ego e Violenta Orgia Universal, para citar apenas dois de seus livros.

– Olhe, poeta, já fui assim bonitinho que nem você, mas me enveredei por caminhos nunca dantes imagináveis. Você conheceu o “Barba Azul” e o “Buraco da Gia”? Não?! Pense em uns cabarés desgraçados. Lá peguei de tudo e de tudo passei. Conheci amigos cachorros e cachorros amigos. Aderi ao Fome Zero e estou aqui, sem nada. Sentenciou-me o homem em um rápido estalar de língua, acertando o copo de pinga exatamente no centro de sua goela. Mira perfeita. O velho olhou a praça através do copo, depois se virou para os garçons.

– Mais uma dose, disse, apontando para o copo. – O garçom que tinha pressa em vê-lo pelas costas veio atendê-lo já com meu consentimento de cabeça de que podia pendurar mais uma por minha conta. 

A tarde sempre se tornava noite nos desvarios das sabenças de Mário. O cabra tinha cultura para dar e vender, mas não tinha o maldito vil metal e por isso mesmo era descartado das grandes rodas pelos escribas janotinhas sempre muito cheirosos e alinhados.

Com um tapa na mesa de metal, Mário levantou-se, balançou para um lado e para o outro, sungando as calças velhas para confidenciar-me: Poeta, mais uma vez obrigado... mas aquele trocado que você disse que ia me dar...olhe que dinheiro não traz felicidade...

Estava na hora de seu plantão noturno na Praça do Ferreira, onde morava. Foi a derradeira vez que troquei palavras com Mário Gomes. Dali para frente, nossos destinos foram outros, totalmente outros. Ele entrou para a eternidade falecendo no dia 31 de dezembro de 2014, sepultando-se no cemitério da Parangaba, em 1º de janeiro de 2015. Aos seus amigos e principalmente inimigos ele deixou o seguinte poema:


Quando eu morrer

Irão distribuir minhas camisas,
Minhas calças, minhas meias, meus sapatos.
As cuecas jogarão fora.
Ninguém usa cueca de defunto.
Irão vasculhar minha gaveta.
Vão encontrar muita poesia,
Documentos e documentários.
Só sei dizer
Que foi gostoso viver.
Sentir o amor e proteção de minha mãe.
De conhecer meus irmãos, meus amigos.
De ver de perto as mulheres.
Só posso deixar escrito:
“Obrigado, vida”. 

(MG)

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Túlio Monteiro - escreve aqui todas as segundas-feiras.

7 comentários:

  1. Parabéns, Túlio, pela homenagem ao nosso poeta das ruas. Só uma correção: ele foi sepultado no cemitério da Parangaba, no colo da mãe-guardiã.

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    1. Caro amigo Raymundo Netto, você é um dos meus escritores preferidos. Seu trabalho literário também é irretocável. Abraço.

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    2. Erro corrigido, poeta. Obrigado. Túlio Monteiro.

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  2. Excelente, Túlio Monteiro! Como é de costume, seu trabalho literário merece aplausos, e cá estou para aplaudi-lo, com as minhas mais sonoras palmas. Abraço.

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    1. Sempre uma grande amiga, Lucineide. Obrigado pelo reconhecimento. Isso vindo de você é muito bom. Túlio Monteiro.

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  3. Sabia que já havia lido a crônica anteriormente. És a novidade das segundas. Acompanhando.

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  4. Texto maravilhoso! Esse jeito ímpar de dizer as coisas profundas com simplicidade que só você, Túlio Monteiro, possui!

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