domingo, 5 de setembro de 2010

Resenhas: A casa, por Marlúcia Nogueira

Natércia Campos, Edições UFC,
2ª ed., 2004, 89 páginas,
romance, R$ 11,0
O livro A Casa, da escritora cearense Natércia Campos, foi publicado em 1999 e, desde então, é considerado um dos melhores romances brasileiros pós-modernos. Filha do escritor Moreira Campos, falecido em 1994, Natércia fez seu próprio caminho literário, apesar da manifesta influência do pai na preferência pelo conto e na concisão da linguagem.

A narrativa de A Casa é lírica e encantatória. Já nas frases iniciais do romance podemos identificar uma linguagem cadenciada, com rimas internas, espécie de ecos, que podem representar também os sons do passado voltando para nos contar a história daquele casarão: "Fui feita com esmero, contaram os ventos, antes que eu mesma dessa verdade tomasse tento". Essa frase, por exemplo, poderia perfeitamente ser organizada em versos, dada sua musicalidade que nos faz lembrar quadrinhas populares. A retomada da origem do feitio da casa aponta para a perspectiva temporal que direciona todo o enredo.

Um dos aspectos relevantes desse livro singular é o foco narrativo, centrado na própria casa, que é narradora-personagem e também espaço dos acontecimentos, o palco da narrativa. Mergulhada nas profundezas de um grande lago, ela ressurge para contar a história de três gerações de seus antigos moradores. Em meio a essas histórias, que incluem  incesto e suicídio, a autora enxerta lendas do Nordeste, como histórias de assombração, de alma do outro mundo e maldições que se instalam entre os membros da família, às vezes, separando-os um do outro, dolorosamente.

O livro dialoga com a tradição de José de Alencar, em O Guarani e em Iracema, quando busca recriar o passado histórico da nossa colonização, visto que os primeiros habitantes dessa Casa vieram de Portugal.
No plano estilístico, notamos semelhança com o recurso narrativo utilizado por Mário de Andrade em Macunaíma, devido aos traços rapsódicos (uma mistura de “cantos”) e outros elementos da tradição popular oral, como a história do “encoletado em couro”,  a do “menino do rastro de pluma” e algumas superstições, como os prenúncios de tragédia feitos pela fantástica voz da “lâmina das águas” dos açudes. Lembrando ainda o estilo de Guimarães Rosa, é possível recortar  dentro do texto certas demonstrações do senso comum, através de aforismos e dizeres populares: “- Meus filhos machos, só um não vingou... Há numa ninhada sempre um ovo goro. Um rebanho tem sempre uma ovelha perdida. O que é de raça caminhando passa.”

Em constante vigilância, porque não dorme nunca, a Casa presencia os fatos naturais e sobrenaturais que se dão em suas dependências, flagrando, inclusive, a chegada da morte. Na condição de observadora privilegiada por não ter uma vida tão curta quanto a dos homens, a casa-personagem mantém na memória a marca dos tempos, que lhe confere a experiência necessária para contar a história dos homens, sugerindo também a alienação destes em relação ao espaço que habitam e às forças misteriosas que regem todos os destinos.

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Marlúcia Nogueira

Autora da resenha

Cearense nascida em Aracoiaba, passei um bom tempo em Ocara, dando aulas de Língua Portuguesa e Literatura no Ensino Médio, e atualmente moro em Pacajus.
Apaixonada por livros desde criança, passava longas tardes na Biblioteca Pública Rui Barbosa, em Aracoiaba.
Graduada em Letras (UECE), com Especialização em Literatura e Formação do Leitor (UECE) e Mestrado em Literatura Brasileira (UFC), sou professora de Literatura nos cursos semipresenciais de Letras / Português, pela UFC.
Como professora efetiva pela SEDUC, no momento integro a equipe PAIC da 9ª CREDE – Horizonte, cuidando do eixo de Literatura Infantil e Formação de Leitores, com grande prazer.

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