sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Um universo chamado Benfica

Lira Neto    27 de agosto de 2010
Amanhã, monitorado por um bom amigo, o professor Kelsen Bravos, o ônibus do Percursos Urbanos parte do centro da cidade em direção ao Benfica. Por isso mesmo, gostaria de estar aí, para escolher uma cadeira próxima a uma das janelas, um lugar qualquer que me permitisse uma visão privilegiada do trajeto.

Afinal, aquele bairro faz parte indissolúvel de minha vida.

Se eu ainda morasse em Fortaleza, ou se pelo menos estivesse por aí neste final de semana, já teria um programa certo para a tarde de amanhã, sábado. Caminharia pela Floriano Peixoto até chegar em frente ao edifício Raul Barbosa, ali onde está a sede do Centro Cultural Banco do Nordeste. Lá, pontualmente às quatro da tarde, subiria no ônibus com a tabuleta "Percursos Urbanos" instalada no parabrisas. Seria mais um dos passageiros desta que é uma das ideias mais geniais - e mais simples - de que já ouvi falar em relação ao mapeamento afetivo de uma cidade.

A cada novo sábado o ônibus do "Percursos Urbanos" faz um itinerário diferente. São viagens temáticas, que percorrem a essência, a memória e os aspectos menos evidentes de uma Fortaleza que não está retratada em previsíveis cartões postais. Porém, uma Fortaleza que pode ser tão bela - e muito mais verdadeira - quanto aquela que consta dos slogans políticos e do catálogo tão pouco criativo dos guias turísticos.

Um mediador, sempre íntimo ao tema, conduz o percurso, sugerindo olhares menos óbvios e menos apressados sobre a paisagem da cidade. No trajeto, revelam-se matizes, desvendam-se segredos, descobrem-se novidades que na verdade sempre estiveram ali, bem diante de nós, mas que o imperativo do cotidiano impede-nos de parar, compreender, contemplar. É mesmo como se um novo mapa simbólico, uma cartografia irresistivelmente inusitada, se desenhasse sobre o traçado de pedra e asfalto que compõem as já tão conhecidas ruas e avenidas da cidade.

De 2008 para cá, os passageiros do Percursos Urbanos, entre tantas outras viagens, já excursionaram, por exemplo, pelo universo das lendas urbanas de Fortaleza, à espreita dos indícios do célebre Cão da Itaoca e da terrível Perna Cabeluda. Já percorreram o roteiro das manifestações arquitetônicas de uma Fortaleza despudoradamente cafona, com direito a paradas obrigatórias em frente à catedral de pretensão gótica construída debaixo de um sol de rachar, à inacreditável Casa do Português e seu desenho bizarro e, é claro, à estátua gigantesca e estrábica de Nossa Senhora de Fátima plantada à margem da avenida 13 de Maio.

O ônibus do Percursos Urbanos já trafegou também pela geografia sentimental de escritores como Moreira Campos, Ciro Colares, Gustavo Barroso. Já revisitou o espírito de uma Fortaleza insubmissa, conferindo os cenários de revoltas populares e sublevações históricas. Já flanou pela Fortaleza boêmia, pela Fortaleza dos maçons, pela Fortaleza de Fausto Nilo, e por tantas outras Fortalezas mais ou menos conhecidas - e desconhecidas.

Como a Fortaleza dos dançarinos de salão, a Fortaleza do bumba-meu-boi, a Fortaleza das lagoas aterradas, a Fortaleza de mangues estrangulados. Mas também a buliçosa Fortaleza da imprensa alternativa dos anos 70, a Fortaleza da "belle epòque" cabocla, a Fortaleza dos trabalhadores do mar e, quando se imagina que até para a criatividade há algum limite, a Fortaleza dos caçadores de ETs.

Amanhã, monitorado por um bom amigo, o professor Kelsen Bravos, o ônibus do Percursos Urbanos parte do centro da cidade em direção ao Benfica. Por isso mesmo, gostaria de estar aí, para escolher uma cadeira próxima a uma das janelas, um lugar qualquer que me permitisse uma visão privilegiada do trajeto.

Afinal, aquele bairro faz parte indissolúvel de minha vida. Foi nele que passei alguns dos melhores anos de juventude, orbitando entre o prédio da antiga Escola Técnica Federal, o Centro de Humanidades da Uece, a constelação de equipamentos culturais em torno da torrinha cor de rosa da reitoria da UFC e, é claro, a buliçosa feirinha da Gentilândia. Um perímetro universitário que alguns amigos tratavam, com carinho e certa ironia de inspiração ideológica, como PCdoB: Pólo Cultural do Benfica.

Foi ali que estudei, perambulei, namorei, deixei a barba e o cabelo crescer, descobri-me poeta marginal e anarquista juvenil. Foi ali que participei de passeatas pueris, bebi numa miríade de botecos sujos, conheci gente bacana e um pessoal nem tanto assim. Ali, escrevi para revistas literárias efêmeras e fiz amigos perenes. Desafiei professores obtusos e aprendi com alguns - poucos, é verdade - mestres geniais. O verdadeiro aprendizado estava nas ruas, na atmosfera utópica com que conduzíamos nossas existências tão ingênuas e, ao mesmo tempo, tão idealistas.

Éramos jovens. Fazíamos mil revoluções por minuto nas mesas do Esquina Azul, do Bar das Letras, do Jazz Blues Bar e, mais tarde, do Pertinho do Céu. Embriagávamo-nos de vinho barato e boa literatura no Bosque da Letras, fazíamos xixi no pedestal da estátua da praça e, quase todo dia, víamos Moreira Campos de paletó e gravata dirigindo o seu fusquinha. Como gostávamos do velhinho. Gostávamos mais ainda de seus contos cheios de silêncios, interditos e sofisticadas sacanagens.

Hoje, tantos anos depois, o melhor de tudo é saber que a história de amor entre o bairro e várias gerações de fortalezenses não se esgota nesse tipo de reminiscência, na simples nostalgia. Soube que, agora mesmo, tramita na Câmara Municipal de Fortaleza um projeto que oficializa a criação do "Pólo Cultural do Benfica". Vão institucionalizar, portanto, o epíteto brincalhão de PCdoB. Ótimo. Mas torço para que isso não signifique um simples batismo solene com base em um trocadilho que, um dia, soava genial, mas que hoje perdeu em frescor e sentido.

Seja como for, amanhã, caros leitores, se estiverem a bordo do ônibus do Percursos Urbanos em direção ao Benfica, bem na hora em que passarem diante do Centro de Humanidades da Uece, perguntem ao Kelsen Bravos a respeito da nossa grande frustração daquele tempo de estudantes. Nunca conseguimos sequestrar, de verdade, a estátua de São Tomás de Aquino instalada à entrada do prédio, como tanto idealizávamos. O plano era rocambolesco. Alta madrugada, eu, Kelsen e o gigante Vessillo Monte roubaríamos a imagem do expoente da filosofia escolástica para colocar outra em seu lugar: a de Exu, que pretendíamos comprar em uma loja de artigos de macumba.

Que pena. Jamais cometemos tão sonhada heresia.


Fonte: Diário do Nordeste e Blog do Lira Neto

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