domingo, 22 de agosto de 2010

Crônica para relembrar o Benfica de Moreira Campos





Túlio Monteiro*


Manhã dessas da vida decidi flanar pelas ruas com e sem saída da velha Gentilândia, fundida em tempos mais atuais ao bucólico Benfica. Bairro boêmio e intelectual, reduto último de um tempo passado, início do século XX, casas de um só andar, quase nenhum duplex, nada ainda de prédios arranhando céus tão limpos de barulhos ou nuvens de fumaça.

Sim! Apesar da proximidade geográfica que o Benfica guarda em relação ao sujo e abandonado centro de Fortaleza, nada lhe afeta a maciez do tempo onde relógios preguiçosos parecem marcar seus dias. Domingos, então, nada mais tranqüilizante que apreciar sem pressa de chegar a lugar nenhum, fachadas de casas aquietantes, árvores farfalhantes, bem-te-vis, rolinhas cascavel, pardais e, com sorte, o singrante gavião que costuma habitar as copas das altas mangueiras do Bosque de Letras. Será ele o antigo morador daquelas paragens dos meus tempos de acadêmico? – Vinte anos passados – Ou se tratará de um seu descendente, gerações pósteras de velhas asas caçadoras?

Certa noite boêmia de lá, lançaram-me aos ouvidos de poeta uma daquelas indeléveis frases que costumam nos acompanhar por toda a vida: “Morar no Benfica não é simplesmente morar, é habitar um privilegiado estado de espírito!” E como! É preciso se ir até lá ao amanhecer de um final de semana, deixando-se ir preguiçoso por entre as barracas da feira livre, sentindo, um a um, os extratos, cheiros emanados das frutas, verduras e afins expostos nas bancadas de madeira que, de tão velhas, certamente guardam histórias de décadas e décadas de sol, chuva, sorrisos e saudades. Chuva que no Benfica cai e se torna cheiro de amor, vida e pena de morrer.

Ventos quentes de verão não têm vez por aquelas bandas. Sombras de altas castanholeiras e imponentes benjamins amenizam a sede física e espiritual dos amigos – gerações e gerações deles – mesinha de bar tranqüilo, cerveja gelada no copo, músicas na altura certa para amenizar dores de amores. E que não nos venham estacionar as ruas os famigerados “carros-bomba” com seus infernais aparelhos de som, milhares de watts despejados sobre tímpanos sensíveis. Afinal, pelo que sei, porta-malas foram criados para guardar objetos, inclusive, claro, malas. Não! Que não venham os donos dos “carros-bomba” tentar infligir aos do quieto Benfica uma prática que parece buscar suprir – através da potência eletrônica de seus autofalantes – suas carências por dotes mais avantajados ou desempenhos sexuais menos pífios, se é que me faço entender. Isso não permitiremos, como tantas vezes já não permitimos.

Moreira Campos (Fonte:http://fortalezaemfotos.blogspot.com)
E que a saudade de tua estrutura atual, Benfica de guerra, nunca se torne verdade, jamais se aplicando a você as sábias palavras do eterno mestre Sânzio de Azevedo: “Quando um homem perceber mudanças nas ruas pelas quais há tempos caminha, ou começar a lembrar de coisas que já não mais existem, ele estará ficando velho... E sábio”. Quero ficar velho te vendo igual, não por teimosia do idoso chato que provavelmente serei, mas por conhecer, assim como uns outros poucos felizardos que te habitam, certos segredos de tua geografia. Geografia esta que perdeu, no último novembro**, a casa de Moreira Campos, demolida e devorada que foi. Virou estacionamento o solo doméstico e cultural que por tantos anos foi pisado pelo maior contista cearense de todos os tempos. Casa que também serviu de abrigo a uma menininha que, sem medo de rotulações, decidiu por seguir os caminhos do pai famoso: Natércia Campos, amiga tão cedo retornada ao seio de Deus. Natércia, ironicamente a autora do já célebre romance A Casa. Ironia das ironias.

Ante esses rompantes de pseudo-modernidade, meu Benfica de Epicuro, Benfica de quintas tão aprazíveis, só me resta sonhar-te tempos melhores, onde a silenciosa revolta de teus habitantes e a História deste Ceará quase sem memória se encarreguem de dar conta dos dias que virão, ceifando as asas capitalistas que hoje sobrevoam teu casario desguarnecido.
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*Túlio Monteiro é escritor e crítico literário. Crônica escrita no início de 2006.
** Em novembro de 2005, a Casa de Moreira Campos foi demolida para construir um estacionamento de shopping.

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5 comentários:

  1. Caro Kelsen, Caro Túlio,

    A memória de um lugar tão representativo quanto o Benfica não deveria virar apenas figura de texto...Apesar do belo texto de Túlio, estamos vendo lugares tão valiosos indo abaixo para virar apenas um amontoado de concreto, sem vida, sem estilo. É bem revoltante mesmo. Ainda bem que nosso Moreira Campos está bem longe...

    abraço. Araceli

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  2. Prezado Túlio,

    Você me fez lembrar a minha infância pelo bairro Damas pulando muros em busca das frutas da antiga Funefor... Hoje, com tristeza vejo a outrora imponente Casa do Português agonizando por destino menos inglória que de um cortiço...

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  3. Não conheci o Bem Fica antigo mas amo todo e qualquer modo de preservar a memória de um lugar. Parabéns ao escritor da crônica e aos leitores tamném.

    Irene - Limoeiro do Norte.

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  4. A todos que lembram de meu pai, meu muito obrido.

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