segunda-feira, 20 de abril de 2009

Feliz aniversário, Fortaleza?

Quanta estupidez, meu Deus! Viver é muito perigoso. Um cabo despreparado, agora também vítima, um bando de vândalos, estes sim impunes. Precisamos saber como se organiza, quem estimula essas ações criminosas. Uma sede de justiça resseca nossa garganta: que o cabo seja punido exemplarmente, não por ele pobre vítima, mas pela instituição que arma despreparados; que esse vandalismo genocida seja definitiva e expressamente extinguido da nossa sociedade com a detenção, julgamento e a devida punição aos agentes desse terror, em todas as instâncias, a dos que agem e as do que planejam.

Reproduzo aqui a crônica de Raymundo Netto, sobre mais uma fatalidade gerada pela violência em Fortaleza, na semana do aniversário da capital cearense.

Crônicas de Nádia (o adeus à Diana Tobri)

Raymundo Netto

“Bem, alguns me conhecem como Praça dos Mártires, a primeira praça de Fortaleza, com muito orgulho; outros me conhecem mais como Passeio Público, e como agora esse é o nome com maior destaque resolvi escolhê-lo para o Orkut. (...) Tenho muitas histórias pra contar e adoraria conversar, fazer novos amigos. Quem puder, venha me visitar pra conversar, encontrar os amigos, relaxar, namorar, trazer a família, fazer um piquenique, tirar um cochilo (tenho espreguiçadeiras a disposição de segunda a sexta), jogar xadrez, ler, enfim, as opções são muitas . Sejam todos muito bem-vindos!”
Com essa chamada, Nádia Brito, 22 anos, estudante de História da Universidade Estadual do Ceará, em conclusão de curso, abriu um perfil de Orkut autodenominando-se “Passeio Público”, e assim respondendo e interagindo com quem a adicionasse. E mais, oferecendo-se: “Precisando de fontes, livros, referências sobre mim, é só pedir e terei muito prazer em compartilhar”.
A conheci recentemente. Não mais que um ano. Ingressou em meu orkut “depois que soube de um livro”... Tão jovem, achei curiosa a sua paixão pela cidade (como se eu não soubesse...), seu interesse pela história, pela conservação e preservação do patrimônio. “Você vai sofrer muito ainda, Nádia”. “Ora, e eu não sei?” Ela era monitora da disciplina de Didática e Ação Educativa Patrimonial na Universidade, participava do projeto de requalificação do Passeio Público, ação da ONG Mediação dos Saberes, e estagiava no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura.
Dizia estar lendo muito, colecionava fotos, artigos de jornais, queria saber mais e quanto mais lia, mais ficava fascinada por Fortaleza. “Para que tanta pressa, menina? Tenha calma. Eu já fui assim.” Ela queria ensinar História, mas faria Direito também, tinha muitos planos na área educacional e afirmava: “Vou me preparar o melhor que eu puder para realizar meus objetivos”.
Enquanto isso, participava de todo tipo de projeto que aparecesse em sua frente. Era dinâmica, engajada, criativa e, acima de tudo uma otimista romântica. Linda, era linda. Sabia de seu valor e garantia que o que mais chamava atenção nela era a sua alegria, alegria essa impressa constantemente em seu sorriso largo, gratuito, descrição unânime extraída das lembranças de seus amigos, colegas e professores inconformados com a forma besta com que um policial despreparado (cabo Francisco Carlos Barbosa Ribeiro, 50 anos, 26 de quadro), em meio às rotineiras brigas e apedrejamentos de ônibus da cidade por torcedores de futebol, arrancou-lhe toda esta vida, após um dia de aula, numa parada de ônibus do Itaperi, na semana passada (dia 15, dois dias depois do aniversário da cidade).
Como livrou o flagrante, dizem que a lei é justa, o cabo Ribeiro, que precisou de três tiros para calar de vez a Nádia, vai responder o processo em liberdade.
Quando ouvi a notícia pela televisão não pude deixar de olhar para as minhas filhas, ainda com nove anos, e arriscar imaginar a dimensão da dor dos pais neste momento. Sendo ela filha única, é incalculável. Mesmo assim, eles ainda tiveram força, determinação e doaram os órgãos da estudante (rins, fígado, córneas e coração) para que, pelo menos, seis pessoas possam carregar um pouco de sua vida adiante. Eles, felizardos.
Vi, também pela TV, a mulher que já recebeu, após interminável espera na fila de transplante — outra dura realidade —, o coração de Nádia. Ele continuará pulsando, resistindo, lutando.
Já a Nádia, a moça de história de final triste, final este que devemos tomar como nosso, espero que seja bem recebida “num outro lado”, tomara que exista algo assim, e que nesse lugar possa ver o mar, o céu, o sol, a lua, sentir o fresco vento no final de tarde, admirar réplicas de estátuas gregas e que por lá seja recebida por um imenso baobá, — ah, o baobá tem que haver —, e possa encontrar a paz, uma paz que ela não encontrou aqui, e que nós ansiamos de braços cruzados, pobre almas impassíveis e adormecidas, torcendo e fingindo que não é com a gente.
E é com muita tristeza que escrevo agora essas palavras de adeus à Nádia, ou Diana Tobri, personagem criada por ela (seu nome ao contrário), lamentando que a espetaculosa cidade de contrastes, desigualdade, impunidade e violência que ela descobria-se “fascinada” se encontre ainda tão despreparada e indigna para receber e garantir o futuro.

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