segunda-feira, 14 de maio de 2007

Sol-posto

Caminho equilibrista sobre o fino muro que separa o apolíneo ­- império da razão - do dionisíaco - anarquia dos impérios. Antes, a mais leve das brisas me fazia flanar dionisíaco. Ô beleza! Era o mais feliz ali no lado esquerdo (que é o lado do coração). Só um cataclismo a lá tsunami, às vezes, fazia-me recolher para o outro lado. Com o passar do tempo me acostumei a andar por sobre o muro sem risco de pender pra lá ou pra cá. Depois fui me tornando cada vez mais formal, mais apolíneo. Engolido pelo lesco-lesco, hoje o trabalho é que me manda. Gosto disso; mas rotina implacável às vezes esgota.
Aí bate uma saudade, esse sentimento revelador de que o presente não está muito bom, e desejo estar daquele lado canhestro do muro. Aí o menino inquieto, o poeta ávido de vida, se arvora dentro de mim, feito um saci a pular dentro do meu coração, reclamando espaço. O fauno mais perseguidor de ninfas se agiganta e me ordena cumprir um ritual bacante, boêmio.
Buscando-me conter, olho o relógio. Geralmente é por volta das 16 horas. Quase fim de tarde. Ainda há sol lá fora e calor e brisa marinha (e mulheres que passeiam sobre os calçadões com seus sorrisos e roupas coloridos). Ainda há tempo... pronto já caí do fio do muro. Saio da sala como quem sai do claustro. Meço as possibilidades e vou à beira-mar. Quero ver o pôr-do-sol. Preciso vê-lo e buscar de novo o equilíbrio nesse ritual cotidiano que a natureza nos oferece.





O pôr-do-sol é a mais pura celebração da natureza. Impossível não se tornar melhor ao reverenciá-lo. Para este rito, Fortaleza dispõe alguns altares. O mais conhecido é o da ponte – construída por ingleses para o comércio; mas os cearenses a batizamos Metálica. Sim a Ponte Metálica é uma catedral para a homilia do sol-posto.
Pra lá me dirijo, caminho sobre ela, sinto o cheiro e o gosto salitrado da brisa aspergida pelo quebrar das ondas dos verdes mares bravios do Ceará nas longarinas da velha e reformada ponte. Alcanço o lugar mais ermo, estou pronto para as lições do silente sermão do Sol, que é o da renovação.
De início, ele é cáustico, metálico. Inclemente, inquieta, multiplicando o desconforto, o estresse de quem o está a observar. Olhá-lo de frente, afrontá-lo assim, não há quem possa. Seria um ato irracional insistir nisso. Quem fizer essa irracionalidade findará com cegueira também física. Eis a primeira lição: a da resignação. Sugere: olha para ti mesmo, fecha os olhos e medita.
Mas o que se inicia pungente, vai amenizando. Sai do metálico incadescente aos matizes de vermelho, roxo e púmbleo. Aos poucos, devolve ao ser a possibilidade de olhar. Até chegar o momento de iluminação sem a presença do astro, que já mergulhou na linha do horizonte; mas sua luz, agora amena, permanece e proporciona a cada um ver o entorno de si. Sim, só para que as pessoas possam sentir que não estão sós e quanta beleza há no coletivo. Eis a segunda lição: a da contemplação. Não estás só, olha tranqüilo para as pessoas e as coisas, dá-lhes a tua atenção. Conduz ao mantra: Ama o próximo como a ti mesmo.
Por fim, o que é penumbra vai ficando escuro. Essa inversão de luz devolve por completo o ser a si mesmo. Só que o agora de novo ensimesmado livrou-se da tensão com que chegara e já tem guardado no espírito o espetáculo do pôr-do-sol. Nunca mais esse rito o deixará, pois aprendeu com a natureza um mistério da paz. É a terceira lição: a da transcendência. Reverbera: a paz está em ti, és a minha imagem e semelhança.
Cumprida a homilia do sol-posto. O equilíbrio deveria estar de volta, pois uma situação quase apolínea se instauraria, caso fosse direto para casa ou de volta ao trabalho, e se não houvesse o leste.
Mas, comigo, é só olhar para o leste e ver a lua se refletir nas águas já escuras da tarde-noite, onde brincam golfinhos, que o portal da boemia se abre. E assim, tranqüilo, pouso sentimental numa mesa de bar... um chopp, uma música, um olhar... um bate-papo falando da vida... e – quem sabe, na supremacia das emoções – braços, corpos suados, ao ritmo das ondas da preamar, fazendo amor, eternizam, do jeito humano, a tal homilia do sol-posto.

Kelsen Bravos

8 comentários:

  1. A-do-rei, simplemente.

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  2. gostei do texto tive de ir ao dicionário várias vezes, foi blz aprendi d+ as palavras dizem muita coisa

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  3. Que bom que gostaram, apesar do anonimato.

    Abraços,

    Kelsen Bravos

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  4. Lindo, Kelsen,

    O Antonio Carlos e eu, ao longo das nossas viagens pelo Brasil, colecionamos fotos e dividimos momentos como esse. A contemplação limpa a alma e energiza.

    Abraços, Lane * *

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  5. Tenho também muitos altares da homilia do sol-posto guardados em mim. São cenários naturais surpreendentes.

    Como é bom viajar, né?

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  6. Ainda que o mundo acabe, herdarei na lembrança, nosso tempo de estudantes, e tantos sonhos,nem direito sonhados!!! Antonio Fernandes/Skolástica..um amigo que se orgulha e envaidece de sua sumidade cult...

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  7. Amigo Antonio Fernandes, meu querido amigo, somos todos muito devedores da contribuição do outro. Seu talento sempre me foi muito inspirador, um excelente gravurista, estudante exemplar, humorista pioneiro da geração que investiu no humor fixado em Fortaleza, e, agora, também fotógrafo, arte por meio da qual socializa toda a poesia do seu olhar. O orgulho da nossa amizade é todo meu, amigo.

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