sábado, 12 de maio de 2007

Evoé!

Às vezes ficamos assim malemolentes, depois que tomamos um bom vinho. E um bom vinho para um boêmio é – antes de tudo – razão para um encontro libativo. Livre daqueles exagerados comentários sobre as características organolépticas da bebida. Esses discursos são uma antilibação. Acabam com quaisquer possibilidades de diálogo.

Encerro essa arrogante trelência, dizendo: Que vinho que nada! Sou viciado mesmo é em gente! Porque é o que sou. Em tudo que penso e faço o que me predomina é a essência humana.

Às vezes há quem refute esse meu vício, afirmando que ser humano é ter todos os defeitos, é não lutar contra a natureza animal que nos habita. E baseia seu argumento elegendo como máxima a “sábia” fábula do escorpião.

Aquela que dá conta de um aracnídeo desses que pediu “carona” a um ser anfíbio (um sapo), para transpor um rio sobre as costas dele. No meio do caminho, o tal escorpião crava-lhe o venenoso esporão no lombo de seu benemérito Caronte. O anfíbio, impactado com tamanha traição, para tentar entendê-la pergunta por que tamanha perfídia. Ouve como resposta que escorpião é naturalmente traiçoeiro, e não resistiu lutar contra a própria natureza.

A fábula tem a sabedoria do bom observador que tenta explicar o comportamento humano, fazendo analogia entre a natureza do lacrau e do humano. Mas é de fato um desmedido equívoco, por dois motivos: primeiro, porque mais do que comparar o humano com o inumano, tenta explicar um pelo outro. Grande tolice! O ser humano de verdade domina o animal que é em si mesmo. Ao fazer isso, substitui pela solidariedade a competição – circunstância até compreensível entre os animais, porque eles competem por sobrevivência. Daí o paradoxo no exemplo do escorpião. Por sobrevivência, ele não deveria matar o seu benfeitor; mas fê-lo exatamente para sobreviver. O paradoxo é uma criação humana. Coitado do bichinho, o que ele tem a ver com a covardia do bípede racional? A resposta a essa questão é o segundo ponto: nada. É pura transferência, sublimação do atraso de quem ainda tem medo da plenitude de ser humano.

A essa plenitude prefere a barbárie da competição, espaço mais aético que existe, do ninguém por ninguém, do cada um por si. Daí perder-se no entremundo do racional e do irracional. Querer conquistar destruindo, logrando, tirando vantagem, lucrando, matando quem lhe mostra num gesto o caminho: a solidariedade.

Ora pois o humano de verdade não acumula, porque o excedente ele comunga. E o bom vinho é um eloquente exemplo de comunhão, vem sempre acompanhado do pão que é repartido entre todos, por isso todos desse pão que compartilham são companheiros. A libação antes de tudo e por excelência é um ato de companheirismo, de solidária comunhão, jamais de competição ou exibição organoléptica.

A libação é um ato boêmio e a boemia é o primeiro estágio da evolução humana, pois o boêmio ama o próximo como a si mesmo. Até chegar o dia de transformar o próprio sangue em vinho e o próprio corpo em pão.

Evoé!!!!

Kelsen Bravos

5 comentários:

  1. quem sabe lidar com idéias é outra história...gostei da crônica, me lembrei de um texto do Roberto Damatta "O cru e o cozido" do livro "O que faz o brasil Brasil", ele mostra como o ritual do comer está enraigado na cultura brasileira ao ponto de usarmos diversas expressões, comuns ao trato com alimentos em nosso dia-a-dia. Vale a pena conferir, é uma "delícia" assim como o seu :]. Grande Abraço! Sérgio Melo

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  2. Meu caro Sérgio Melo,

    Que bom que você gostou de saborear meu texto.

    Evoé!

    Kelsen Bravos

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  3. Esse texto é d+. adorei.

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  4. Quer dizer então que o filho de Deus era um boêmio?

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  5. Caro Pedrosa,

    Não tenho a menor dúvida disto: Jesus é boêmio.

    Para entender melhor o que afirmo, leia, de princípio, estes dois livros de Frei Betto:

    1. Entre todos os homens - nele verá um Jesus Cristo boêmio, alegre, bem diferente daquele imerso num "vale de lágrimas", um Cristo mais centrado no amor que na culpa, na justiça que na lei, na liberdade que na disciplina, na solidariedade que na autoridade.

    2. Comer como um frade - nesse livro Frei Betto ensina receitas simples para alimentar o corpo, à mesa, com prazer, pois "nem só de pão vive o homem". Mateus 4,4

    Kelsen Bravos

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